segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Tem dias que eram pra ser celebrados, 
mas há uma trava que impede. 
E então se tornam dias carregados. 
Quando deveriam ser leves. 
São dias em que a mágoa impera 
e onde nada é breve. 
E embora tudo devesse flutuar
tudo, tudo é pesar...
               
                   (Tâmara Rossene)

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Todos os dias eu a vejo, as primeiras horas da manhã, arrastando sofregamente "o menino". O menino, é um homem de cerca de 30 anos, com problemas mentais, que se comporta como se não tivesse saído da primeira infância. Ela, já passou dos setenta e cinco. Tão magrinha, como se fosse partir ao meio. Ele, cheio de vigor, sem ter aprendido a controlar a própria força, enérgico, um garoto em explosão. Ela o arrasta pela rua comprida, no que parece ser uma tentativa de fazê-lo se exercitar. Ele para ao menor ruído de uma folha que cai, de um cachorro que passa, do vento que sussurra em seus ouvidos. Ela lhe chama carinhosamente para que siga. Ele para, não quer ir, volta atrás. Ela tão frágil, diz: vem... Uma voz fraca, de mãe, que já mingou as suas forças. Já perdeu todas as noites de vigília, todas as manhãs e tardes, nesse exercício que não termina, porque o filho não cresceu, nem crescerá... Ela só tem a ele. Ele só tem a ela. E eles estão presos nesse ciclo. Mas ela já está findando. E ele segue, menino saltitante, curioso, para além do fim. Vendo-a assim, me sinto tão covarde diante de conflitos que me parecem agora, banais. Observando-a, passo a achar tanta gente que me parecia gigante, minúscula. E cá estou eu , tentando imaginar quem os prendeu nesse ciclo perverso. Tentando pensar, em quais teorias irei me agarrar, para tentar arrumar uma explicação que sirva apenas para acalmar o meu próprio espírito. Mas no fundo, estou apenas tentando afastar um pensamento que me acomete, de quem o arrastará assim pelas ruas, se ela se for antes...



quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Você consome porque sente que precisa, ou porque uma voz, lá fora, lhe grita?
Quando compra, a quem você atende, a necessidades supérfluas, urgentes, ou ao temor de parecer que está numa lógica diferente?
A lógica é sua ou é subordinada a um chamado maior?
Você já se perguntou porque está comprando, para atender a quais anseios, para tapar a quais vazios, ou isso não importa?
Por quanto tempo dura a sua felicidade nas aquisições que realiza?
Você compra por utilidade?
Quem atribui esses valores?
O outro vale pelo que compra ou isso não tem importância?
Comprar envolve um sentimento banal ou profundo?
Quem é você, na lógica do consumo?

sábado, 10 de novembro de 2018


                                                               



Eu sou vento forte
arrebentando as telhas
de uma casa inacabada.
Água de enxurrada
jorrando no meio da rua
enquanto uma louca nua
sorri.
Eu sou palavra
explodindo, escorrendo, gritando
que não caibo em mim...

P.S. Foto, Verona, 2013.

terça-feira, 6 de novembro de 2018

Em meio a exaltação política, uma mulher que fazia parte da minha lista de amigos, fez uma postagem se referindo as feministas, dizendo que eram pessoas que não sabiam “ser mulher”. Fiquei por dias com essa frase me incomodando. Eu sei que ela se referia a características que atribuía a "feminilidade". Mas o que será mesmo ser mulher? Pensei naquelas mulheres que acordam quando o sol ainda nem raiou, preparando o almoço, o café, saindo para pegar o ônibus das cinco da manhã, sem tempo de passar um batom, de sentar lendo uma revista em um salão de beleza, no final de semana, com as roupas prá lavar, cuidando sozinha dos filhos, do homem que não soube ser homem, será que não sabem ser mulher, porque a vaidade não lhes cabe, no tempo que não lhes resta? E aquelas mulheres que cuidam exaustivamente de filhos com doenças crônicas, comendo em pé nos corredores dos hospitais, sem rímel, sem lápis, sem unhas pintadas, saberão ser mulher? E as que correm de suas casas, fugidas, trêmulas, com os cabelos desgrenhados, pela violência do companheiro que as expulsou, saberão ser mulher? Aquelas que estão há cinco, dez, vinte dias sem dormir, ninando o pequeno filhos nos braços, com as olheiras escorrendo pelo rosto, saberão? As que catam lixo em lamas fétidas, sem perfumes caros, sem saltos altos, saberão ser mulher, assim tão longe desses formatos? E aquelas que tem apenas duas, três peças de roupa, porque se não for assim, os filhos não tem o que vestir,o que comer, serão mulheres que sabem ser mulher?  Não, não são os padrões de feminilidade impostos. Nem o feminismo impede o batom, minha cara. Mas do que vale esse cabelo impecável e essas unhas inquebráveis, se você sequer imagina que ser mulher é justamente compreender essa dor que aflige a tantas outras e se indignar com os direitos que não chegam as outras? Você precisa aprender sobre ser mulher...

P.S. Foto da página http://tribunadoceara.uol.com.br/blogs/dialogos-urbanos/tag/dia-da-mulher/


A vista do mar
se verticalizando...
A vista depende de quem está pagando.
É prá todo mundo a ótica do mar?
ou prá quem pode  pagar?








No fundo da casa
Nosso mundo escondido...

Onde ninguém pode ver

E outros olhos não alcançam

Nossas almas dançam...




P.S. O quintal de minha vó, em outro tempo, num outro universo...

quarta-feira, 31 de outubro de 2018


Hoje eu acordei pensando nas manifestações da cultura popular dessas terras ribeirinhas. Pensando que nós, num território tão distante do semi-árido, já nascemos marcados pelo nomadismo. Distantes a 600 e tantos quilômetros da capital baiana e a mais de 800 de Brasília, desde cedo aprendemos a migrar. Migramos para estudar, para trabalhar, por atendimento médico, por melhores condições... Mas a cultura popular persiste nesse lugar do esquecido, nesse território do invisível. Em meio aos discursos de que está acabando, a negação e a afirmativas que lhe desqualificam (são vagabundos, cachaceiros, pedintes). Migraram do Centro da cidade, para a periferia. Mas, resiste. E de certa forma, nós todos, integrantes de um território em constante trânsito, fugindo a invisibilidade e aos discursos que também nos negam, resistimos também...

P.S. Na foto, o Reis de Nêga.

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Mais um dia. Eu sou silêncio e dias que se repetem. E eu que já quis ser, bolas de sabão carregadas pelo vento, estouradas ao acaso. Mas existo e isso é uma eternidade. Existir dói. São calos que se renovam e sangram. São dias que começam e terminam iguais. São dores que latejam do mesmo jeito. É o mesmo jeito e a gente fingindo que está recriando. Existir é repetir no infinito. Eu continuo querendo ser as bolas que estouram, coloridas. Ser feliz, deve ser existir no instantâneo...

terça-feira, 16 de outubro de 2018

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Estou numa viagem desconfortável de 12, 13, 14 horas. Entre os cochilos na poltrona dura do ônibus, acordo e vejo que a pessoa que está acomodada do outro lado do corredor, está deitada nas duas poltronas, mas resolve esticar as pernas até o braço da minha cadeira do outro lado. Eu me reviro, tentando mostrar insatisfação, mas o passageiro abre os olhos, me fita e segue com os pés presos a minha poltrona, como isso não fosse a meu respeito. Mudo de posição e tento mais um cochilo. Então me recordo do dia anterior. No supermercado, em frente a uma prateleira, olhando os preços dos produtos, alguém estica o braço sobre o meu ombro, e pega uma lata de leite. Não me pede licença, nem desculpas, nem moça, por favor... Como se eu não estivesse naquele lugar, ou como se eu não importasse. Depois me recordo da mulher que quase me atropela na rodoviária e eu apenas estava no mesmo trajeto, mas havia opções de desvio a nossa volta. A forma que ela me olhou, era como se eu estivesse no lugar errado, embora nós duas tivéssemos o direito de ocupar aquele lugar. O guarda chuvas que ela segurava machucou o meu braço, mas ela apenas puxou o objeto, sem olhar para mim. Noutro dia meu filho estava sentando em um canteiro, na porta de uma loja, e uma Senhora conversando animadamente com duas amigas, esticou o braço prá jogar uma embalagem vazia dentro do canteiro. A embalagem caiu exatamente na cabeça do meu filho que gritou. Eu me virei prá olhar e elas passaram sorrindo e gesticulando, sem nenhuma preocupação com o lugar errado do lixo, ou com o menino que gritara. Lembro bem do show do Palavra Cantada na Concha Acústica, em Salvador. Chegamos cedo prá ocupar um lugar em frente ao palco. Mas as pessoas que foram chegando depois, empurravam, fingiam que estavam onde não estavam, para garantir um posicionamento melhor, intimidavam as outras com grosserias, diziam que tinham chegado primeiro. E eram pais e mães com os seus filhos! 
Percebo que as pessoas estão invadindo o espaço alheio como se não houvessem mais limites, como se não fosse necessário pedir permissão ou se desculpar. Primeiro veio aquela idéia de que isso ocorria nas redes sociais, porque o mundo virtual encorajava os posicionamentos, incentivava os discursos, varria prá longe a timidez e as reservas. Porque se você postava na sua página, a rede era pública, então você estava sujeito as ofensas, aos absurdos ditos (foi assim que me justificaram, embora eu discorde veementemente). Mas parece que assim como aquela ideia de que alguns atiradores de universos virtuais saíram matando no mundo real, as realidades estão se misturando. Das ofensas na rede, estamos nos enredando aqui do lado de fora, num caminho obscuro. Talvez porque na intensidade das navegações, as máscaras já foram derrubadas e os personagens que trafegam lá, são os mesmos do lado de cá.


Foto retirada da página https://blog.pianetadonna.it/fiorecarmelina/riconoscere-le-persone-ipocrite-comportarsi/

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

sexta-feira, 21 de setembro de 2018


A Promessa de Anália
 Era mês de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, padroeira da Canabrava. Sinal de festa, de cheiro de beiju de tapioca na casa de farinha, de passos apressados de mulheres na lida, nos quitutes, na arrumação das casas, da Igreja e dos meninos. Canabrava, um povoado de poucos habitantes, visão poética perdida na zona rural de Ibotirama, na Bahia, mas que poderia ter sido recortada de qualquer cantinho do Nordeste, com seus meninos de pés descalços, lombos de jegue carregados, repiques de sino e pouca chuva. Na frente das casas mangubeiras imponentes e seculares e atrás um córregozinho, pareciam gritar constantemente que no sertão há vida! 
Anália se criara em Canabrava. Dali só saíra aos 15 anos, após o casamento com Seu Mine, único amor que tivera na vida e que já lhe arrastava prá uma boda de ouro. Sua vida fora driblar as 05 pontes de safena, a pressão alta e o diabetes, entre gargalhadas em que ao final exclamava: ai, ai!, comidas e guloseimas “idecentes” de tão saborosas e proibidas para as suas restrições de saúde.
Entre as suas idas e vindas ao Hospital, três coisas não lhe abandonavam: a vaidade, a alegria e as promessas, que ela fazia aos Santos Padroeiros (Santa Rita era a preferida, porque nascera em 22 de maio). Pagava-as com foguetes, rezas encomendadas, velas e caminhadas até as capelas. Em Canabrava, na Barriguda e em tantos outros lugares, os Santos já foram testemunhas de sua devoção.
Naquele dia Anália esperava ansiosa a sua ida a Canabrava, pra rever contemporâneos, amassar a farinha de beiju, tão diferente da cidade e acompanhar a procissão que saía da igrejinha. Mas não é que na hora exata do carro partir, percebe que a sua sandália arriada, como chamava os calçados sem salto, tinha desaparecido! E corre daqui, corre acolá, nada de sapato! E ela repetia: mas uma sandália novinha, comprei só para isso! Diacho! Acode a nora, acode a filha, acode o marido, mas a sandália insiste em desaparecer. Lembram então que a festa é só daqui a três dias e que a nora partiria no dia seguinte e teria a incumbência de levar o tal calçado.
Anália então parte como de costume sorridente, não sem antes deixar recomendações, dona de casa zelosa que era e pra não esquecerem mais uma vez, não deixassem de levar a tal sandália. A nora já entre dentes, fingindo um sorriso, diz um não se preocupe um tanto quanto exasperado.
Ao chegar a Canabrava, revêem os amigos, provam das maravilhas naturais da roça, relembram fatos e tudo correria na mais perfeita paz, se não fosse a nora chegar com a notícia do desaparecimento, ou melhor, do não aparecimento da tal sandália.
Anália amua. Os sinos da Igreja já anunciam a procissão e parecem chamá-la. Todos lhe rodeiam a suplicar para ir com a outra que a nora zelosa (e precavida) levara e ela nada. Eram 70 e poucos anos de teimosia. Sai a Anália devota e entra a vaidosa. Que o sapato que lhe trouxeram não combinava com o tal vestido. Que comprara um exclusivamente para a ocasião. Alegam que as ruas são de barro, que o povoado e o povo, são simples, que ninguém irá reparar. Mas nada. Surge uma amiga e anfitriã e cede o próprio sapato, também igualmente novo, que comprara naquela semana na cidade... Ela olha e faz cara de desdém, agradece, mas não foi aquele o escolhido por ela.
Novas adulações: filhos, marido, amigos, parentes, vizinhos. O sino tocando e o clamor de vozes em torno de Anália. Ao que o filho impaciente, sugere sem pensar, talvez pra dar uma idéia absurda, pra importuná-la ou para acordá-la de tamanha falta de flexibilidade. E diz: ô minha mãe, porque a Senhora não vai descalça? Finge que está pagando promessa e pronto. Acaba o problema.
Todos sorriram desdenhosos. E um clarão ilumina os olhos de Anália. Rapidamente volta-se ao espelho, ajeita os cabelos grisalhos, o vestido impecável. Coloca o cordão de ouro. Tira a sandália emprestada da amiga e dá o braço ao marido. Todos correm a fazê-la desistir da idéia. Mas percebem ser em vão.
Minutos depois, atrás do cortejo, explodem os foguetes, se misturando ao som dos hinos entoados. Em meio a fila indiana, vai Anália de vela na mão, reza nos lábios e os pés calmamente tocando no barro vermelho.
Atrás da fila e na porta das casas, o comentário é um só: mulher de doutor, pagando promessa descalça. Sem vaidades! Isso é que é simplicidade!
E para todos Anália fazia um meneio de cabeça e dava um sorriso, sem perder a alegria e a devoção.


segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Nas estradas do Mestrado em Crítica Cultural, fevereiro de 2016...


O vendedor de redes deposita a sua mercadoria sobre os degraus, com sacrifício. A chuva cai a alguns passos de onde ele se encontra. Mais uma vez o observo na solidão da rodoviária de Feira de Santana. Mais uma vez o encontro no cruzamento a que me disponho, entre Alagoinhas e Ibotirama. Ontem esbarrei em ZUMTHOR e em CANCLINI, teimando com as afirmações do que li do último, sobre cultura e globalização. Há pouco, fui atravessada por um lista de teóricos, em clima de euforia e cansaço. E cá estou eu de novo, me deslocando. No espaço e na área de formação. E mais uma vez a frente do Senhor que vende redes. Elas flutuam em suas versões coloridas e ele é como uma âncora. Está preso a esse semblante cansado. Mais uma vez eu saio da minha zona de conforto. Mas eu só queria um outro universo, onde eu pudesse flutuar! E ele aparece e atira a sua âncora aos meus pés, cortando-me as asas de plumas. Mas na madrugada eu adentrarei no meu reino. E ao acordar, o meu filho me beijará sorridente, afastando os olhos de súplica que insistem em aparecer onde nossos passos se cruzam. Até que na próxima sexta, quando eu estiver entre um e outro mundo, as suas redes venham novamente me sacudir....


Uma noiva posando na beira do lago Paranoá... A imagem me trouxe as noivas na porta da Igreja Nossa Senhora da Guia, há alguns anos. Os carros abertos com os convidados, os foguetes e os gritos de Viva São Sebastião! Viva Nossa Senhora da Guia! Viva os noivos! Nos casamentos de agora, tudo muito encaixado nos padrões. Desde as lembrancinhas em detalhes minúsculos, até os sorrisos dos noivos. E os flashes? Ah! Cabelos impecáveis, braços e pernas cabendo perfeitamente nos efeitos calculados, mãos propositadamente depositadas sobre os ombros da dama de branco. E eu aqui, olhando a noiva e sentindo saudades daquelas fotografias amareladas com o casal sentado em meio aos presentes. Fui em alguns casamentos em que os noivos eram dirigidos: olhe para lá, sorria prá cá! Então, olhando a noiva ali tão comportada na beira do lago, desejei vê-la plenamente feliz, lançando água para os lados, se atirando na lagoa, rebelando-se a direção do fotógrafo e libertando num gesto simbólico, as outras tantas, para que possam sorrir por si mesmas...


quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Salvador, década de 80 e meu presente de aniversário atrasado, um ingresso para assistir aos "Menudos" na Fonte Nova. Expectativa em alta! Antes do show e já aficcionada por fotografias, encomendo o clique ao meu pai. Estávamos há algumas décadas do consumo facilitado e acabáramos de trocar a TV em preto e branco, por uma Philco colorida e grande o suficiente, para ocupar um lugar privilegiado na sala, ao lado dos livros e acima da vitrola Philips. Embora eu quisesse ser eternizada em frente a estante, o meu pai queria mostrar a sua mais nova aquisição e como eu estava com pressa, cedi. E assim parti com o look desenhado por mim mesma - uma camisa do meu pai, sobre um bustiê laranja que mandei fazer. Cabelo picamaleão, magérrima, fugindo a alguns padrões de estética da época e ainda, com o coração aos pulos - eu era uma menina, indo ao seu primeiro show! Assisti a tudo, tensa, da arquibancada, tentando enxergar as coreografias ensaiadas, cantadas em playback, através de um binóculo e querendo me lançar ao abismo, porque naquele instante provei do fruto proibido: a cada luz do flash da câmara, uma luz sobre mim. Primeira compreensão sobre a indústria cultural e sobre a hipnose que produtos como aquele, exerciam sobre nós, tolos consumidores. Pensei naquela fábrica de meninos cantantes apenas para vender. Pensei no preço absurdo do ingresso que pagamos, para que eu estivesse em uma cadeira de arquibancada, a quilômetros do palco, me acotovelando com as pessoas. Pensei no engôdo a que eu e outras meninotas estávamos vivendo, algumas gritando, outras aos prantos. E saí outra pessoa daquele espetáculo repleto de luzes, embora eu tivesse dito a todos, que tinha sido o melhor show para o resto da minha existência. E cá estou eu, em 2018, pensando em como se ampliaram as possibilidades de consumir, dos eletrônicos aos enlatados, desde aquela época, em que se comprava a duras penas, em crediários intermináveis. De lá para cá, um longo caminho... Mas você que me lê nesse momento, por favor, me responda: o quanto amadurecemos enquanto consumidores, em todo esse tempo?





Eu sou a que se debruça sobre a janela aberta.
A que se estende sobre a paisagem, quase devota.
Aquela que não separa as terras férteis das insólitas.
Eu sou aquela que se lança sobre a vista que se oferece
Seja ela o precipício, ou o mar.
Eu sou aquela cujo trajeto é contemplar....
                                                                 
 (Tâmara Rossene)

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Tomando Ana Fani, "o lugar é a base da reprodução da vida... As relações que os indivíduos mantém com os espaços habitados se exprimem todos os dias nos modos de uso, nas condições mais banais, no secundário, no acidental. É o espaço passível de ser sentido, pensado, apropriado e vivido através do corpo". E assim lá vai João, construindo suas relações com o lugar, criando seus próprios sentidos com os espaços que o circundam. Criando a sua própria lógica, atrelada a lógica maior da cidade. E você? se move, se omite, ou age? quem é você, na lógica da cidade?

 

sexta-feira, 7 de setembro de 2018


Sobre o sete de setembro...
Enquanto os incontáveis milhões
enchem a pança de porcos malditos
será que haverá algum grito?
que salve os oprimidos
que silencie o gemido
das muitas fomes
dos excluídos.
Mas as crianças indiferentes
marcham.
E a frente, as balizas dançam.
E se marcham,
haverá alguma esperança?
             (Tâmara Rossene)


quinta-feira, 6 de setembro de 2018



Assistindo no canal Curta! ao documentário "A vida é um sopro", sobre Oscar Niemeyer. Fiquei refletindo quando ele disse que "a arquitetura não é para os pobres. Usufrui da arquitetura quem tem dinheiro". E seguiu afirmando que os pobres podem parar por um instante e olhar, mas seguirão. E se um prédio for ocupado com um projeto social, ou algo nesse sentido, aí cumprirá a sua função social, mas que os pobres não usufruem da arquitetura. Mas assim tem sido na visão de alguns. Os pobres só podem e devem enxergar aquilo que lhes compete: o lugar que ocupam na máquina, sem compreender que são parte dela; o "destino" que devem cumprir; a aceitação de condições mínimas de vida; a passividade... Conheço tantos ricos com uma visão tão medíocre sobre o que vêem a sua volta. E conheço tantos "pobres" no sentido material, com visões tão aprofundadas de coisas que nem todos conseguem enxergar. Nem sempre quem consegue pagar, consegue compreender a essência do que tem em mãos. Ter acesso está relacionado ao poder que o dinheiro trás, mas o "olhar" não é mais favorável a quem tem maior poder de compra. Esse trecho me trouxe a tona, os privilégios, que só estão a serviço de alguns. As oportunidades, que não cruzam o caminho da totalidade. O simples fato de estar nesse momento, usufruindo calmamente de imagens e pontos de vista diversos, já me colocam num outro patamar, mas isso não quer dizer que eu saiba utilizá-los...


https://www.youtube.com/watch?v=CASrRa7B6-c

Lá fora a folha cai
os meninos correm
o vento sopra
tudo se move.
E embora eu pare
em torno do meu lamento
lá fora tudo segue
tudo é movimento...

                          (Tâmara Rossene)

domingo, 2 de setembro de 2018

Eu sempre estive entre dois mundos e transitando entre eles. Do lado de cá, o calor incessante, a chuva (como milagre), o rio ora seco, ora enchendo, a solidão dos finais de tarde. Do lado de lá, a chuva como inconveniência no cotidiano da metrópole, a água salgada e farta, a solidão em meio ao burburinho da multidão. Num canto a oferta abundante daquilo que o dinheiro podia comprar. No outro, a escassez e os desejos. Mundos que não se complementavam, que não convergiam, que não me traziam pontos de intersecção. Mas um dia me disseram que o rio desaguava no mar. E depois desse dia, eu me sentia desaguando de um lado ao outro. Talvez por isso eu seja assim, nem doce, nem salgada, água salobra que nem sempre é possível engolir. Talvez por isso eu seja solidão e multidão, mas nunca cheia, repleta, sempre sedenta. E de todas as vontades, a que mais  me persegue é essa vontade de transitar entre territórios e pessoas, entre sentimentos e desejos, como água correndo em canais estreitos, que busca chegar ao mar...

P.S. Fotografia no rio São Francisco, Povoado da Passagem, Muquém do São Francisco, 2018. Crédito da foto: Marcelo Bomfim.

sábado, 1 de setembro de 2018




O outro engoliu minha sede
comeu minha fome
e sorveu minhas noites insones
de desejo.
O outro saciou suas vontades
e eu alheia
em meio a tarde
a vagar.
O outro me deixou um gosto
que não passa
de ver a vida passar...



P.S. Morro do Pai Inácio, janeiro, 2017. Crédito da foto: Mariana Bomfim.




Ao longe (será?) assisto a expansão das pessoas bens de consumo, produção em larga escala de seres cheirando a perfume importado, trajando roupas de grife, degustando comidinhas gourmet,  comprando pacotes promocionais, enquanto deslizam em telas, redes, celas, comendo, bebendo, cheirando marcas e tendências, pessoinhas clichês, cérebros programados, clones direcionados, mera engrenagens do mercado. Raridade é achar entre elas, uma que seja bem durável!

P.S. Foto na Aldeia Hippie, Arembepe, 2017. Crédito da foto: Mariana Bomfim.

terça-feira, 28 de agosto de 2018


Eu era uma menina branca, de longos cabelos castanhos, na década de 90. As apresentadoras de TV eram moças loiras e as garotas sonhavam em ocupar o lugar das platinadas Paquitas. Eu nasci numa sociedade que exaltava a pele branca e cresci acreditando que era mais bonita do que as meninas da minha rua na Federação, bairro onde morava em Salvador, na década de 80 e onde eu imaginava reinar entre as garotas negras da minha idade, que segundo me diziam, tinham “cabelo duro e beiço rachado”. Mas em plena década de 90, eu me apaixonei por um garoto negro e embora quisesse passar despercebida vagando com ele pelas ruas, ou me sentar tranquilamente numa sessão de cinema, ou no Campo Grande, não era difícil identificar olhares e dedos apontando em nossa direção. Mais difícil ainda, era me desvencilhar das perguntas e indiretas de pessoas muito, muito próximas. E muito mais difícil ainda, era lidar com os meus próprios preconceitos, com todos os padrões que cresceram ao meu lado, com as minhas convicções de garota branca, de classe média. Aliás, a condição dele, de se sentar numa cadeira próxima a minha, numa escola particular de classe média, serviu muitas vezes de consolo para os questionamentos alheios. E eu volta e meia, respondia: - sim, os pais dele tem formação, casa própria, emprego formal e carro. Anos mais tarde, eu me torno mãe de uma menina negra. E falar com naturalidade disso para as pessoas parecia um pecado: - tá louca? Ela é morena! Olha os cabelos, são encaracolados, a raiz é lisa! Ela é moreninha. Quando comecei a comprar para ela, livros com personagens negros, que não se mostravam subalternos e histórias de heróis negros, muitos queriam saber, porque eu não lhe dava “livros normais”. Dizer para ela para jogar fora os padrões a sua volta e para reafirmar a sua identidade com o que via no espelho, era como uma luta de um soldado contra um batalhão. Tive que me destruir várias vezes para nascer de novo, liberta do que cresci ouvindo. Não havia discursos soando como agora. Travamos lutas solitárias. E hoje, quando vejo tantos posts dizendo que “somos iguais”, algo dentro de mim ainda dói e lateja... 



P.S. A foto é de 1999, com Mariana, no Dique do Tororó.

Um dia tudo será finito...
A mágoa que não cessa
o olhar perdido
tuas mãos sempre abertas
meu grito.
Um dia
nenhuma pegada minha
na porta de casa
nenhum dos rostos de agora me aguardando
 e eu já não olharei com desprezo para os arrogantes.
Nenhuma vírgula
nenhuma dúvida
nenhum pensamento infame.
E nós tolos
nessa lógica
insistindo
que tudo segue
 que tudo é infindo...

P.S. A foto do relógio, na Praça de San Marco, Veneza, 2013.

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Deveria ter uns 80 e poucos anos. Senta-se ao meu lado, aguardando a sua vez no Caixa. Fica me observando por longos minutos e depois pergunta, com um sorriso maldoso: Do que você mais tem medo? Eu passo a divagar: De não conseguir suprir a necessidade dos meus filhos, de morrer de repente, de… Ele me interrompe, aflito e diz: Eu tenho medo de gente sonsa! No princípio achei a frase tola. Mas depois, refletindo sobre acontecimentos recentes, após alguns minutos em silêncio, eu lhe devolvi: É esse meu maior medo! Eu tenho medo de gente sonsa!
E você, que me lê nesse exato momento... Do que tem medo?
Eu tão submersa no cotidiano aflito, que sequer olhei a janela convidativa ao meu lado, quando ele gritou: mamãe! vamos contemplar? um sopro sacolejante sobre mim. Logo eu, que sempre lhe apontei a paisagem e lhe indiquei uma brecha, por onde fugimos das lentes medíocres que insistem em nos ofertar. Por suas mãos pequeninas, um atalho de volta...

P.S. Foto no Morro do Pai Inácio, 2016.
Num dia cai um dentinho, depois outro, depois ele cresce e você se pega fazendo poesia que narra o tempo passando...

Se despeça, moça!
Se despeça!
Deixe a janela aberta

para os acenos
dos segundos que não voltam.
Se despeça, moça!
fugindo a coisas vãs e aos lamentos
porque não se repetem os tormentos.
(não da mesma forma)
Se despeça sem abandonar a altivez
intensa, eloquente
e envolta em um tanto de insensatez.
Fugindo ao frívolo, ao morno e ao que é insonso.
Sendo antagonismos
ora paz, ora confronto.
Se despeça
sendo grata e plena
a um só tempo
porque tudo é movimento
e nesse trajeto do esvair
viver é se despedir.
(Tâmara Rossene)

domingo, 19 de agosto de 2018


A moça derrama vazios a minha frente. Cuida do corpo e por ele se entrega a sacrifícios diários. Compra cremes, fórmulas e horas eternas em academias. Trabalho, diz ela, é o corpo cedendo ao cansaço e as rugas. Trabalho envelhece. E vai destilando os vazios que a compõe. Muitos homens a tem, mas só os que podem suster seus vazios. Não quer saber dos que tem fome. Não a preocupa os que estão sedentos. Mas deseja ver se plena em corpo, músculos, cabelos, pele de seda. E eu a olhá-la, tão absorta em pensamentos inquietos. Abarrotada dos questionamentos alheios. Sedenta de justiça e indignação. Com fome de correr trecho e de percorrer textos. Me retraio. A moça dos vazios parece ser feliz em sua própria ausência...

Os olhos eram grandes e gulosos. Cabelo ralo e dedos compridos levados a boca. A boca, com gosto de mundo. Eu queria sair correndo com ela atada aos meus braços. Fugir do mundo. Às vezes, eu criava estratégias para isso. Talvez se eu pulasse um abismo rumo ao infinito: só nós duas. Depois me via correndo, correndo, até chegar num lugar só nosso. Bastava que pronunciassem a palavra "crescer" perto dela. Não, ela não cresceria! Eu a colocaria tão próxima a mim, que a menina de dedos logos e fortes, não desejaria partir. Ela sorria me olhando e eu lhe confidenciava num olhar, os meus planos secretos. Mas lá no fundo, uma tristeza me assombrava: até quando eu poderia mantê-la assim, hipnotizada sob o meu olhar? ao seu redor, tudo girava e ela já começava a virar a cabecinha para observar...


Mas vendo a fotografia e olhando aqui dentro, compreendo o quanto tem de verdadeiro nesse sorriso que se externa. Eu compreendi que quando o outro segue por caminhos tortuosos, não cabe a mim esse peso. Eu me libertei do peso do outro! Por isso eu continuo com as mesmas piadas sarcásticas em meio a labuta e com o senso de humor me alavancando os dias. Continuo reclamando do excesso de burocratização nas horas corridas, mas com o mesmo olhar atento prás dores que escuto todos os dias. E continuo me sentindo impotente em meio as mazelas alheias, em dores que não sinto na pele, mas que me golpeiam. Eu continuo achando graça de cada história que ouço na voz do meu filho pequeno e ficando encantada com cada narrativa ao telefone, na voz da moça, vinda lá do Planalto Central. Eu continuo tendo idéias absurdas de projetos que vou descartando por mera preguiça. E continuo construindo outros tantos planos. Eu continuo rabiscando poesias no meio das tardes, em meio a pilhas de papéis para cumprir. E continuo me sentindo culpada por isso. E continuo sumindo. E continuo aparecendo do nada e gargalhando. Então esse sorriso que você avalia como mera pose prá fotografia, sou eu caatinga ressurgindo. Lua cheia subindo a serra. Lágrima rolando no meio de uma música alegre de Alceu. Estrada seguindo entre sertão e litoral. Eu continuo...