quarta-feira, 26 de setembro de 2018

sexta-feira, 21 de setembro de 2018


A Promessa de Anália
 Era mês de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, padroeira da Canabrava. Sinal de festa, de cheiro de beiju de tapioca na casa de farinha, de passos apressados de mulheres na lida, nos quitutes, na arrumação das casas, da Igreja e dos meninos. Canabrava, um povoado de poucos habitantes, visão poética perdida na zona rural de Ibotirama, na Bahia, mas que poderia ter sido recortada de qualquer cantinho do Nordeste, com seus meninos de pés descalços, lombos de jegue carregados, repiques de sino e pouca chuva. Na frente das casas mangubeiras imponentes e seculares e atrás um córregozinho, pareciam gritar constantemente que no sertão há vida! 
Anália se criara em Canabrava. Dali só saíra aos 15 anos, após o casamento com Seu Mine, único amor que tivera na vida e que já lhe arrastava prá uma boda de ouro. Sua vida fora driblar as 05 pontes de safena, a pressão alta e o diabetes, entre gargalhadas em que ao final exclamava: ai, ai!, comidas e guloseimas “idecentes” de tão saborosas e proibidas para as suas restrições de saúde.
Entre as suas idas e vindas ao Hospital, três coisas não lhe abandonavam: a vaidade, a alegria e as promessas, que ela fazia aos Santos Padroeiros (Santa Rita era a preferida, porque nascera em 22 de maio). Pagava-as com foguetes, rezas encomendadas, velas e caminhadas até as capelas. Em Canabrava, na Barriguda e em tantos outros lugares, os Santos já foram testemunhas de sua devoção.
Naquele dia Anália esperava ansiosa a sua ida a Canabrava, pra rever contemporâneos, amassar a farinha de beiju, tão diferente da cidade e acompanhar a procissão que saía da igrejinha. Mas não é que na hora exata do carro partir, percebe que a sua sandália arriada, como chamava os calçados sem salto, tinha desaparecido! E corre daqui, corre acolá, nada de sapato! E ela repetia: mas uma sandália novinha, comprei só para isso! Diacho! Acode a nora, acode a filha, acode o marido, mas a sandália insiste em desaparecer. Lembram então que a festa é só daqui a três dias e que a nora partiria no dia seguinte e teria a incumbência de levar o tal calçado.
Anália então parte como de costume sorridente, não sem antes deixar recomendações, dona de casa zelosa que era e pra não esquecerem mais uma vez, não deixassem de levar a tal sandália. A nora já entre dentes, fingindo um sorriso, diz um não se preocupe um tanto quanto exasperado.
Ao chegar a Canabrava, revêem os amigos, provam das maravilhas naturais da roça, relembram fatos e tudo correria na mais perfeita paz, se não fosse a nora chegar com a notícia do desaparecimento, ou melhor, do não aparecimento da tal sandália.
Anália amua. Os sinos da Igreja já anunciam a procissão e parecem chamá-la. Todos lhe rodeiam a suplicar para ir com a outra que a nora zelosa (e precavida) levara e ela nada. Eram 70 e poucos anos de teimosia. Sai a Anália devota e entra a vaidosa. Que o sapato que lhe trouxeram não combinava com o tal vestido. Que comprara um exclusivamente para a ocasião. Alegam que as ruas são de barro, que o povoado e o povo, são simples, que ninguém irá reparar. Mas nada. Surge uma amiga e anfitriã e cede o próprio sapato, também igualmente novo, que comprara naquela semana na cidade... Ela olha e faz cara de desdém, agradece, mas não foi aquele o escolhido por ela.
Novas adulações: filhos, marido, amigos, parentes, vizinhos. O sino tocando e o clamor de vozes em torno de Anália. Ao que o filho impaciente, sugere sem pensar, talvez pra dar uma idéia absurda, pra importuná-la ou para acordá-la de tamanha falta de flexibilidade. E diz: ô minha mãe, porque a Senhora não vai descalça? Finge que está pagando promessa e pronto. Acaba o problema.
Todos sorriram desdenhosos. E um clarão ilumina os olhos de Anália. Rapidamente volta-se ao espelho, ajeita os cabelos grisalhos, o vestido impecável. Coloca o cordão de ouro. Tira a sandália emprestada da amiga e dá o braço ao marido. Todos correm a fazê-la desistir da idéia. Mas percebem ser em vão.
Minutos depois, atrás do cortejo, explodem os foguetes, se misturando ao som dos hinos entoados. Em meio a fila indiana, vai Anália de vela na mão, reza nos lábios e os pés calmamente tocando no barro vermelho.
Atrás da fila e na porta das casas, o comentário é um só: mulher de doutor, pagando promessa descalça. Sem vaidades! Isso é que é simplicidade!
E para todos Anália fazia um meneio de cabeça e dava um sorriso, sem perder a alegria e a devoção.


segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Nas estradas do Mestrado em Crítica Cultural, fevereiro de 2016...


O vendedor de redes deposita a sua mercadoria sobre os degraus, com sacrifício. A chuva cai a alguns passos de onde ele se encontra. Mais uma vez o observo na solidão da rodoviária de Feira de Santana. Mais uma vez o encontro no cruzamento a que me disponho, entre Alagoinhas e Ibotirama. Ontem esbarrei em ZUMTHOR e em CANCLINI, teimando com as afirmações do que li do último, sobre cultura e globalização. Há pouco, fui atravessada por um lista de teóricos, em clima de euforia e cansaço. E cá estou eu de novo, me deslocando. No espaço e na área de formação. E mais uma vez a frente do Senhor que vende redes. Elas flutuam em suas versões coloridas e ele é como uma âncora. Está preso a esse semblante cansado. Mais uma vez eu saio da minha zona de conforto. Mas eu só queria um outro universo, onde eu pudesse flutuar! E ele aparece e atira a sua âncora aos meus pés, cortando-me as asas de plumas. Mas na madrugada eu adentrarei no meu reino. E ao acordar, o meu filho me beijará sorridente, afastando os olhos de súplica que insistem em aparecer onde nossos passos se cruzam. Até que na próxima sexta, quando eu estiver entre um e outro mundo, as suas redes venham novamente me sacudir....


Uma noiva posando na beira do lago Paranoá... A imagem me trouxe as noivas na porta da Igreja Nossa Senhora da Guia, há alguns anos. Os carros abertos com os convidados, os foguetes e os gritos de Viva São Sebastião! Viva Nossa Senhora da Guia! Viva os noivos! Nos casamentos de agora, tudo muito encaixado nos padrões. Desde as lembrancinhas em detalhes minúsculos, até os sorrisos dos noivos. E os flashes? Ah! Cabelos impecáveis, braços e pernas cabendo perfeitamente nos efeitos calculados, mãos propositadamente depositadas sobre os ombros da dama de branco. E eu aqui, olhando a noiva e sentindo saudades daquelas fotografias amareladas com o casal sentado em meio aos presentes. Fui em alguns casamentos em que os noivos eram dirigidos: olhe para lá, sorria prá cá! Então, olhando a noiva ali tão comportada na beira do lago, desejei vê-la plenamente feliz, lançando água para os lados, se atirando na lagoa, rebelando-se a direção do fotógrafo e libertando num gesto simbólico, as outras tantas, para que possam sorrir por si mesmas...


quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Salvador, década de 80 e meu presente de aniversário atrasado, um ingresso para assistir aos "Menudos" na Fonte Nova. Expectativa em alta! Antes do show e já aficcionada por fotografias, encomendo o clique ao meu pai. Estávamos há algumas décadas do consumo facilitado e acabáramos de trocar a TV em preto e branco, por uma Philco colorida e grande o suficiente, para ocupar um lugar privilegiado na sala, ao lado dos livros e acima da vitrola Philips. Embora eu quisesse ser eternizada em frente a estante, o meu pai queria mostrar a sua mais nova aquisição e como eu estava com pressa, cedi. E assim parti com o look desenhado por mim mesma - uma camisa do meu pai, sobre um bustiê laranja que mandei fazer. Cabelo picamaleão, magérrima, fugindo a alguns padrões de estética da época e ainda, com o coração aos pulos - eu era uma menina, indo ao seu primeiro show! Assisti a tudo, tensa, da arquibancada, tentando enxergar as coreografias ensaiadas, cantadas em playback, através de um binóculo e querendo me lançar ao abismo, porque naquele instante provei do fruto proibido: a cada luz do flash da câmara, uma luz sobre mim. Primeira compreensão sobre a indústria cultural e sobre a hipnose que produtos como aquele, exerciam sobre nós, tolos consumidores. Pensei naquela fábrica de meninos cantantes apenas para vender. Pensei no preço absurdo do ingresso que pagamos, para que eu estivesse em uma cadeira de arquibancada, a quilômetros do palco, me acotovelando com as pessoas. Pensei no engôdo a que eu e outras meninotas estávamos vivendo, algumas gritando, outras aos prantos. E saí outra pessoa daquele espetáculo repleto de luzes, embora eu tivesse dito a todos, que tinha sido o melhor show para o resto da minha existência. E cá estou eu, em 2018, pensando em como se ampliaram as possibilidades de consumir, dos eletrônicos aos enlatados, desde aquela época, em que se comprava a duras penas, em crediários intermináveis. De lá para cá, um longo caminho... Mas você que me lê nesse momento, por favor, me responda: o quanto amadurecemos enquanto consumidores, em todo esse tempo?





Eu sou a que se debruça sobre a janela aberta.
A que se estende sobre a paisagem, quase devota.
Aquela que não separa as terras férteis das insólitas.
Eu sou aquela que se lança sobre a vista que se oferece
Seja ela o precipício, ou o mar.
Eu sou aquela cujo trajeto é contemplar....
                                                                 
 (Tâmara Rossene)

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Tomando Ana Fani, "o lugar é a base da reprodução da vida... As relações que os indivíduos mantém com os espaços habitados se exprimem todos os dias nos modos de uso, nas condições mais banais, no secundário, no acidental. É o espaço passível de ser sentido, pensado, apropriado e vivido através do corpo". E assim lá vai João, construindo suas relações com o lugar, criando seus próprios sentidos com os espaços que o circundam. Criando a sua própria lógica, atrelada a lógica maior da cidade. E você? se move, se omite, ou age? quem é você, na lógica da cidade?

 

sexta-feira, 7 de setembro de 2018


Sobre o sete de setembro...
Enquanto os incontáveis milhões
enchem a pança de porcos malditos
será que haverá algum grito?
que salve os oprimidos
que silencie o gemido
das muitas fomes
dos excluídos.
Mas as crianças indiferentes
marcham.
E a frente, as balizas dançam.
E se marcham,
haverá alguma esperança?
             (Tâmara Rossene)


quinta-feira, 6 de setembro de 2018



Assistindo no canal Curta! ao documentário "A vida é um sopro", sobre Oscar Niemeyer. Fiquei refletindo quando ele disse que "a arquitetura não é para os pobres. Usufrui da arquitetura quem tem dinheiro". E seguiu afirmando que os pobres podem parar por um instante e olhar, mas seguirão. E se um prédio for ocupado com um projeto social, ou algo nesse sentido, aí cumprirá a sua função social, mas que os pobres não usufruem da arquitetura. Mas assim tem sido na visão de alguns. Os pobres só podem e devem enxergar aquilo que lhes compete: o lugar que ocupam na máquina, sem compreender que são parte dela; o "destino" que devem cumprir; a aceitação de condições mínimas de vida; a passividade... Conheço tantos ricos com uma visão tão medíocre sobre o que vêem a sua volta. E conheço tantos "pobres" no sentido material, com visões tão aprofundadas de coisas que nem todos conseguem enxergar. Nem sempre quem consegue pagar, consegue compreender a essência do que tem em mãos. Ter acesso está relacionado ao poder que o dinheiro trás, mas o "olhar" não é mais favorável a quem tem maior poder de compra. Esse trecho me trouxe a tona, os privilégios, que só estão a serviço de alguns. As oportunidades, que não cruzam o caminho da totalidade. O simples fato de estar nesse momento, usufruindo calmamente de imagens e pontos de vista diversos, já me colocam num outro patamar, mas isso não quer dizer que eu saiba utilizá-los...


https://www.youtube.com/watch?v=CASrRa7B6-c

Lá fora a folha cai
os meninos correm
o vento sopra
tudo se move.
E embora eu pare
em torno do meu lamento
lá fora tudo segue
tudo é movimento...

                          (Tâmara Rossene)

domingo, 2 de setembro de 2018

Eu sempre estive entre dois mundos e transitando entre eles. Do lado de cá, o calor incessante, a chuva (como milagre), o rio ora seco, ora enchendo, a solidão dos finais de tarde. Do lado de lá, a chuva como inconveniência no cotidiano da metrópole, a água salgada e farta, a solidão em meio ao burburinho da multidão. Num canto a oferta abundante daquilo que o dinheiro podia comprar. No outro, a escassez e os desejos. Mundos que não se complementavam, que não convergiam, que não me traziam pontos de intersecção. Mas um dia me disseram que o rio desaguava no mar. E depois desse dia, eu me sentia desaguando de um lado ao outro. Talvez por isso eu seja assim, nem doce, nem salgada, água salobra que nem sempre é possível engolir. Talvez por isso eu seja solidão e multidão, mas nunca cheia, repleta, sempre sedenta. E de todas as vontades, a que mais  me persegue é essa vontade de transitar entre territórios e pessoas, entre sentimentos e desejos, como água correndo em canais estreitos, que busca chegar ao mar...

P.S. Fotografia no rio São Francisco, Povoado da Passagem, Muquém do São Francisco, 2018. Crédito da foto: Marcelo Bomfim.

sábado, 1 de setembro de 2018




O outro engoliu minha sede
comeu minha fome
e sorveu minhas noites insones
de desejo.
O outro saciou suas vontades
e eu alheia
em meio a tarde
a vagar.
O outro me deixou um gosto
que não passa
de ver a vida passar...



P.S. Morro do Pai Inácio, janeiro, 2017. Crédito da foto: Mariana Bomfim.




Ao longe (será?) assisto a expansão das pessoas bens de consumo, produção em larga escala de seres cheirando a perfume importado, trajando roupas de grife, degustando comidinhas gourmet,  comprando pacotes promocionais, enquanto deslizam em telas, redes, celas, comendo, bebendo, cheirando marcas e tendências, pessoinhas clichês, cérebros programados, clones direcionados, mera engrenagens do mercado. Raridade é achar entre elas, uma que seja bem durável!

P.S. Foto na Aldeia Hippie, Arembepe, 2017. Crédito da foto: Mariana Bomfim.