domingo, 27 de fevereiro de 2011

Sangue



Era só olhar prá um
que se via o outro.
Os outros.
Os que estão distantes.
Os mais próximos.
Os que se expressam.
Os que estão indiferentes.
Os que amam calados.
Os que são poços de mágoa.
Os que gritam.
Os que são silêncio.
Os que sobrevivem.
Os que apenas existem na memória...
Cada um era todos.
Todos eram apenas um.
Em sangue e sina.
Em família!

(Meu pai, vovô Irineu, Meu tio Zé Baga e Pedro Américo, em poeminha meu)

Esse é o meu lugar!

Minha terra tem barquinhos que rumam para o infinito.

Tem flores brejeiras no mato.

Tem gosto de milho e feijão quando chove.

Tem cheiro de água barrenta

e tons coloridos no céu de sertão!

Então por que meu Deus?

tem meninos descalços

com pés mergulhados em lamas fétidas

de braços abertos como se estivessem

em um campo florido.

Tem mãos encardidas segurando o pão dormido

que sobrou do café de ontem.

De quem teve café ontem.

E tem velhos desdentados e de olhar triste

sobre as cercas escurecidas

como celas mal cuidadas.

Com seus atalhos e descaminhos

esse é meu lugar!

Quisera poder transformá-lo

Na terra dos meus sonhos!

(Tâmara Rossene)


Uma poesia de meu pai...chamada Rotina...


Todo dia!

O mesmo trabalho

A mesma lida.

Com cansaços e fadigas

O itinerário repetido

E cenário inalterável.

Nada muda!

A mesma bebida

O mesmo cumprimento

Aos vizinhos da direita e da esquerda

Os mesmos pratos

Saboreados com o apetite de sempre.

Nada Renovado!

Quotidiano simples

De uma vida

Inteira...

(Orlando Ribeiro de Andrade)

A princípio fiquei indignada com a demolição das barracas na orla de Salvador. A meu ver, tudo poderia ter sido resolvido de uma outra forma, com uma substituição gradual dessas estruturas, evitando um maior caos social, já que Salvador possui índices elevados de desemprego. No entanto, não era difícil perceber que havia mega estruturas montadas, impedindo o acesso democrático a praia, um patrimônio de “nós todos”. Passado algum tempo das imagens chocantes das demolições, do choro incontido de muitos e dos escombros a beira mar, a paisagem mostra uma praia livre. Fiquei surpresa com as pessoas voltando a ir a praia levando a velha dupla cadeirinha e guarda sol. E mais ainda, com crianças, toalhas e baldinhos colorindo as areias, com expressões felizes, em substituição a exploração comercial que por ali reinava. Mostra de que há sempre um outro lado, mesmo que as evidências só mostrem um deles.

Mariana, desmistificada...


A minha filha Mariana, adolescente de 14 anos, só anda cheia de anéis e pulseiras coloridas, com um colar preso ao pescoço, de onde pendem dois anéis prateados. Antes de virar moda, já usava uma unha de cada cor. Escreve crônica e poesia. Declama poesias como se fosse dona de todos os sentimentos. É temperamental e cheia de argumentos. Ganha o mundo com argumentos. E a admiração de amigos e colegas que a cercam. Tem um blog onde registra as suas impressões e muitos seguidores. Mas quando o sono chega e está prestes a dormir, eu me dirijo até o seu quarto e tiro um a um, anéis, pulseiras e colares, desfazendo a caracterização daquela personagem. Dou-lhe um beijo na testa e em cada lado do rosto. Digo que a amo. E imediatamente vejo o mesmo sorriso daquela menininha insegura de um ano, prestes a dar o primeiro passo. Penso que para mim ela guarda a sua melhor porção: vê-la assim sem capas, sem armas, sem trajes, como verdadeiramente é...


P.S. Acessem o blog http//:psicosedemultiplaescolha.blogspot.com

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Cotidiano

Nas últimas vezes em que estive em Salvador, percebi que as pessoas tem sido cada vez mais intolerantes umas com as outras. Entro em um fila de banco, um homem simples parece se atrapalhar com a senha que a moça impaciente pede para digitar outra vez. A fila se agita. O homem transpira e olha prá trás. Fico penalizada, ouvindo sussuros ao fundo. Saio dali e entro em uma padaria. Uma mulher com uma criança no colo se atrapalha com a porta de vidro que dá acesso ao local. Duas outras jovens mulheres lhe olham com cara de poucos amigos, aguardando que ela se resolva, sem qualquer gesto de auxílio. Como se aquela fosse uma pedra no meio do seu dia atribulado. E assim fui observando as cenas cotidianas se repetirem. Penso que o acesso a informação cresceu absurdamente. A taxa de escolarização também cresceu. Mas os números pouco revelam a educação que temos praticado diariamente. E não creio que a tal correria seja justificativa plausível prá isso. Nosso egoísmo tem atingido proporções gigantescas! Nos graduamos, pós-graduamos, nos moldamos a linguagem globalizada, entramos na era tecnológica, percorremos redes de relacionamento e somos incapazes de olhar no olho do outro, só para não ter que oferecer ajuda, em ceninhas corriqueiras. E mais tarde em frente a TV, nas fúteis novelinhas globais, condenamos o mocinho pelos pecadinhos cometidos, vertemos lágrimas por qualquer historinha sensacionalista e tolamente acreditamos que fazemos a nossa parte...

Progresso...

No meio do dia, operários presos em andaimes, colocam pequenas pastilhas de cerâmica num majestoso prédio de mais de trinta andares. São cuidadosos e precisos, mesmo correndo riscos. Fico pensando em como devem admirar aquela obra. Mas que quando estiver pronta, terá circulando em seus corredores cheios de câmaras de segurança, homens com aura de poder, carregando seus laptops e celulares. E esses pobres homens que agora moldam o prédio, apenas poderão contemplá-lo como estou eu agora: do lado de fora!

Tâmara Rossene

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Castelo de Areia


A mesma mão que me aplaude

me aponta.

O mesmo que me bajula

me vira as costas.

Posição e poder

trazem a coroa

e minha corte de volta!

Contanto que eu não ouse

tropeçar pelo caminho.

Seu apreço

castelo de areia...

Até que venha o próximo vento!

(Tâmara Rossene)


quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Amor desmedido...

A mulher se posta a minha frente com o filho nos braços. A voz é calma, a expressão serena... Vai relatando sem qualquer revolta aparente ou mágoa, como chegou a este mundo o menino com nome de profeta, desde o nascimento, até a descoberta da paralisia cerebral. Vai narrando a sua saga em detalhes, parando as vezes apenas para acariciar a criança em seus braços. Quase um boneco, em pele e osso, não fosse pelos olhos, que gritam para mim que ali há vida. Em determinado momento da sua narrativa, ele fecha os olhos, como se estivesse se aconchegando ao seu peito. Parece saber o significado daquela mulher para sua existência. Lhe faço perguntas, questiono, me revolvo inteira enquanto ela fala. Me sinto ínfima e ingrata, por imaginar que tenho problemas. Ela continua a falar de toda a realidade que a cerca, envolta em problemas "verdadeiros", como se o menino parado em seu colo, fosse a única alegria que tivesse. Como se os cuidados que ele exigisse fossem pequenos, diante do amor que lhe é devota. Por um instante se recorda que ele quase morreu e que um anjo lhe salvou a vida, como lhe é grata por isso! Penso em quantas mães naquele momento preferiam que a morte tivesse chegado, naquela hora. E ela me fala com os olhos marejados, que graças aquela viv'alma não perdeu o seu filho.
Me arrepio só de pensar nas múltiplas formas do amor e nessa expressão do que se ama sem medidas, de forma incondicional, sob os meus olhos.
Rogo aos céus agora para que ele não se vá tão cedo... Sou agora destroços...Descubro que ela necessita muito mais dele do que o inverso. ..

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Uma poesia de meu pai...

ESTRANHA REALIDADE

Não compreendo guerra pela paz,

Corrupção por status

Miséria por economia

Violência por pacificação

Valentia por honradez

Omissão por sensatez

Mentira por necessidade

Traição por lealdade

Preconceito por virtude

Pudor por conveniência

Moralidade por imposição

O que existe em suma

É muita hipocrisia

E a fragilidade do homem

Que não se conscientiza.

(Orlando Ribeiro de Andrade)


segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Como tudo começou...

Quando eu tinha cinco anos, os meus pais partiram do interior, rumo a capital. As possibilidades que se abriram, de acesso a um novo mundo, foram mais além do que a oportunidade a novos modelos de educação, a civilização e a toda a logística que cerca os grandes centros.
Essa ponte que se criou ligando o interior a capital, me possibilitaram trafegar entre mundos distintos: o barulho e o silêncio, o urbano e o rural, a solidão e o aconchego, o anonimato e o reconhecimento, o caos e a paz...
As viagens entre lá e cá me renderam um espírito contemplativo, a habilidade de sondar os ambientes e as pessoas e a capacidade de adaptação a diferentes universos. Tanto o céu de um quanto de outro mundo me são queridos e absolutamente necessários.
Naturezas diversas com as quais convivo e com as quais aprendi a sobreviver. Estão enraigadas de tal forma, que jamais saberei dizer qual bocado de cada uma delas fazem parte de mim!

Água de chocalho


Corrente e quente

Escorre

Dentro...

No silêncio

O chocalho

Treme...

Quero falar!

Um desejo

Incontido e constante

Queima.

Em carne viva

A agonia.

Um dilacerar oculto

Me aflige

Dia e noite

Como um açoite

De mulher

Que teme

um dia florescer!

(Tâmara Rossene)

Uma história do passado...

Um bêbado no labirinto

Naquela época, a casa de minha avó parecia enorme. E ficava maior ainda quando os adultos saiam de casa, como naquele dia. Entre primos e garotos da vizinhança, devíamos somar umas dez crianças, que se acotovelavam pelos corredores e quartos, brincando de esconde-esconde, numa casa que diziam ser mal-assombrada. Tínhamos pressa de brincar. Primeiro porque viviam nos dizendo que aproveitássemos a infância, pois o tempo passava muito rápido. E depois, porque ficar sozinhos era algo quase impossível, numa família com tantos parentes e conhecidos entrando e saindo daquela casa.

No meio da nossa correria, eis que entra um bêbado. Percebemos que ele zanzava pelo corredor, mas não dávamos a menor importância, apenas nos desviávamos do seu caminho, mesmo porque aquele não era um simples bêbado, mas um parente muito próximo, e já nos acostumáramos a sua farra habitual entre as garrafas. O bêbado saiu do corredor e passou a explorar os compartimentos da casa. Nesse momento um de nós percebe que ele está perdido. Sai de um quarto, entra na cozinha. Entra numa porta, dá em outra. Sai do banheiro, passa para o quintal. Volta do quintal e vai parar na sala de jantar. Um loirinho de nome Ricardo e olhar curioso, aponta o bêbado e grita: - Ih, parece que ele tá perdido num labirinto! Todos riem e resolvem mudar o foco da brincadeira, que passa a ser observar o coitado do homem, já mais tonto agora, do que quando entrara naquela casa.

O bêbado não imagina a algazarra que está provocando na meninada, nem que havia sido descoberto naquele desespero e perdido, começa a raciocinar como sairá daquele lugar, sem dar ousadia para aqueles moleques, porque menino não é trem de gente. Sente os bolsos pesados. O filho da puta do dono do bar, aproveitando-se do seu estado, lhe passara o troco todinho de moeda. Eis que uma idéia lhe surge. Chama as crianças que agora o rodeiam. E fala com dificuldade: - Vocês querem comprar uma balinha?. Remexe nos bolsos e retira de lá o tesouro que servirá de passaporte para sair daquele lugar. – Dou tudo isto a vocês se forem agorinha mesmo. Os meninos tentam lhe arrancar as moedas. Juntando as poucas forças que ainda lhe restam, o bebadozinho fecha as mãos e volta a negociar. – Mas só entrego se vocês saírem agora pra comprar, senão eu tomo tudo de volta! Os meninos gritam em festa e aceitam o acordo. O bebum passa as suas mãos os metais. Alguns rolam no chão. Os garotos se agacham para recolher e o negociador mais tonto ainda com o barulho e o calor a sua volta, grita: - Agora, senão eu tomo! A criançada sai correndo e o bêbado acompanha aos tropeços, a saída do labirinto, quase se atirando aos pés da meninada, feliz por finalmente encontrar o caminho de volta. Quando consegue enxergar a luz do poste da rua, na porta da casa, dá uma gargalhada e diz prá si próprio: - E Zefa ainda diz que eu não sou inteligente!

(Tâmara Rossene)