sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Ainda me lembro do endereço: Av. Crispim, 225, Federação. Passamos uns seis, sete anos, naquela casa, em Salvador. A rua tinha nome de Avenida, mas era uma via muito estreita, de barro, porque o asfalto só ia até a ladeira e a rua começava bem no pé da ladeira e a gente já imaginava quando chovia e tinha que sair atolando até o calcanhar. Acho que casa do tamanho da nossa, com três quartos e uma varandinha na frente, só tinha a de Jaudira e Agenor, do lado direito da nossa. Com a diferença de que a casa deles só vivia cheia, com os cunhados, os meninos, as vozes muito altas, principalmente quando caia a noite. Do outro lado, morava Dona Didi, com cinco filhos, dos quais só me lembro o nome de Lígia, Eliane e Evandro. Dona Didi era lavadeira e as meninas ajudavam a lavar e a engomar as roupas. As meninas estudavam à noite e também davam aulas de banca, vendiam geladinho e faziam faxina. Por diversas vezes, a minha mãe na Faculdade a noite, o meu pai dando aulas e eu me aventurando no Parque São Brás ao lado delas, subindo e descendo ladeira, em trechos às vezes escuros, quando iam entregar as trouxas de roupas para as freguesas. Lígia devia ter uns dezesseis anos, tinha os cabelos curtos e parecia mais velha, porque era alta e tinha uns quadris largos. Eliane, devia ter uns quatorze e também era alta, muito magra e me dava medo com aqueles olhos fixos, quando nos escondíamos nas ribanceiras, brincando de salve latinha. Às vezes me assustava dizendo que se eu me escondesse perto do terreiro que ficava próximo, iriam me pegar prá oferenda. E depois ficava gargalhando, observando a minha reação. As duas eram negras e acompanhei Eliane por diversas vezes, como ela dizia, para "passar ferro no cabelo". Eu ficava admirada com a coragem dela, porque eu tinha certeza que o cabelo queimava naquele ir e vir do ferro, por causa do cheiro de queimado. E perguntava se ela não sentia o ferro encostando na cabeça. Mas Eliane só sorria para o espelho que segurava nas mãos, admirando o efeito no cabelo. Nessa época eu tinha lá pelos oito anos. 

Num domingo elas pediram a minha mãe para me levarem a um passeio no centro da cidade. E lá fomos nós pegar o ônibus no final de linha da Federação, ali perto da rádio Transamérica, conversando e rindo alto, em direção ao Campo Grande. Me mostravam as pessoas da janela, falavam com conhecidos e iam me explicando o que julgavam importante pelo caminho. Descemos na frente do Teatro Castro Alves e paramos no pipoqueiro para comer aquela pipoca que eu só vejo em Salvador, com a camada generosa de manteiga derretida e o coco ralado grudando no brilho da manteiga. Eu me sentia livre e feliz andando no meio das duas, perto da estátua do Caboclo. Num minuto uma ajeitava o meu vestido, no outro a outra tirava o meu cabelo do rosto. E sorriam com aqueles dentes muito brancos. Eliane sempre com aquele ar meio sarcástico. Resolveram seguir para a praça da Sé. E quando estávamos caminhando ali perto do quartel, elas se entreolharam e cochicharam alguma coisa que eu não entendi. E prosseguiram entre cochichos e expressão séria. Até o olhar irônico de Eliane sumiu. Eu não entendia, mas tive medo de indagar. Elas pararam de repente e me perguntaram: Se a gente encontrar alguma colega sua, com a família e elas perguntarem quem somos nós, o que você vai responder? Eu fiquei pensando e não tinha resposta. Mas no fundo eu sabia do que elas falavam. Sabia que não podia dizer que eram da família, porque a resposta não seria aceita. E tive medo de responder. E senti uma tristeza enorme. Porque ninguém havia me falado sobre preconceito ou racismo, mas no fundo eu sabia que não éramos iguais, nem as pessoas nos considerariam assim. E devem ter se passado dois minutos apenas e pareciam horas. E elas insistiam. Eu tive medo de falar a verdade e perder a companhia das meninas que me faziam parecer livre. E meus olhos se encheram de lágrimas. E eu respondi: Que uma é minha tia e a outra colega, ou que são minhas amigas? E elas disseram quase a um só tempo: não, você não pode dizer isso! E Lígia encontrou a resposta que lhe pareceu mais convincente: Diga que eu sou a lavadeira e Eliane a sua babá. Ou que eu sou a babá e ela minha irmã. Eu balancei a cabeça afirmativamente, entre choro e desespero, misturado a um sentimento que eu não sei bem descrever. E elas reafirmaram a resposta que deveria ser dada. Nós três ficamos aliviadas com aquela solução. E recobramos novamente o sorriso e seguimos felizes. 

Hoje, lembrando dessa história, eu fico pensando em como aquelas meninas estavam acostumadas aquele lugar em que se colocaram, para não sentirem ainda mais as garras do preconceito. Preferiram se lançar no quarto dos fundos, das criadas, dos subalternos, para não serem julgadas por passearem na cidade com uma menina branca, vizinha da mesma rua, porém situadas em espaços distintos. Depois disso descemos a Castro Alves, subimos a rua Chile, descemos o elevador Lacerda, andamos pelo terreiro de Jesus, pelo Pelourinho, numa aventura que jamais esqueci, porque parece que ninguém nunca mais me mostrou aqueles lugares daquela forma. E elas agitadas, mostrando aos meus olhos de menina deslumbrada, a cidade sob um outro ângulo. Agora confortáveis por terem (elas mesmas) lançado sobre si a capa da invisibilidade, para que eu pudesse ocupar o lugar que julgavam que deveria ser destinado apenas a mim... Apenas a mim...