domingo, 13 de dezembro de 2015


O milagre da Santa Ana
 Dona Dove sobre os degraus da cozinha segurando em um pedaço de pau que utiliza para se apoiar. Deixa atrás de si o grande quintal, com as galinhas livres e alimentadas. Pela janela que se abre, a serra com pontos brancos, o céu muito azul e uma brisa fresca. Percorro os olhos pela cozinha que se alcança descendo dois ou três degraus, avisto um fogão a lenha e uma outra janela que se oferece, para a vida que corre nos fundos da casa. Passo a uma parede da sala, com fotografias antigas, cujos personagens me encaram. Começo a pensar na história que me levou até aquele lugar, uma memória da minha infância, que eu julgara perdida, mas que a curiosidade me levou a encontrar o fio da meada para resgatá-la. Um barulho de madeira envelhecida cedendo me desperta do pensamento longínquo. Dona Dove senta-se a minha frente, com dificuldade. Meu olhar é então desviado para ela, que começa a me contar sobre a história da Santa Ana ou Defunt’Ana, como alguns a chamam, da qual acabo de visitar o túmulo, dali a menos de um quilômetro. A história é do tempo em que Ibotirama era cortada por levas de animais, atravessando os seus domínios. No tempo em que os vapores singravam as águas do rio São Francisco. Por ali, Senhores poderosos eram proprietários de muitos escravos. Ela ensaia um sorriso, mas não chega a esboçá-lo e diz que ouviu a história do seu pai e que o seu avô também a contava e que de lá para cá, já se passaram muitos anos. Olha para o alto, como se tentasse calcular o tempo decorrido, mas desiste.
Ana era uma escrava que morava naquelas bandas. E cometeu um crime muito grave, aos olhos do homem que detinha a sua posse. Ana cometeu o bárbaro crime de engravidar. O dono de Ana não perdoou o seu erro e tratou de escrever a sua sentença. Imagino quem seria o pai do filho de Ana. Se algum escravo encantado com a sua beleza, se um filho do seu Senhor, ou se o próprio dono, que não esperava aquele desfecho. Não se sabe ao certo, quantos anos se passaram até que Ana pudesse cumprir o que lhe fora destinado. Mas o seu filho já havia nascido e já era um pouco crescido. A mando do Senhor, dono de Ana, abrem um buraco e jogam nele centenas de formigas, que logo mais, se alimentariam da carne da pobre escrava. Ana é morta pelas picadas dos insetos. Agonizando calada até que o seu destino se cumprisse. E o seu corpo estaria entregue ao relento, embora a paisagem da Barriguda tenha uma aura de encantamento, com as suas serras e o vento que em alguns períodos não cessa. Não fosse o seu filho, ter lhe arrastado o corpo e colocado sobre um pedaço de couro, levando-o para ter um sepultamento justo, como qualquer alma deste mundo, mereceria. Cava então a cova da mãe, que o alimentou e o amou. Ali deposita a sua dor e o corpo de Ana. E passa a peregrinar para aquele local, com suas rezas e seu lamento, algumas vezes, ao longo dos dias.
Poucos dias se passaram e quando o menino parte para mais uma hora de prantear a sua mãe, é tomado por um susto enorme. A cova jaz aberta e vazia. Fica confuso. Procura imaginar o que aconteceu, para lhe tirarem a única coisa que lhe restara. A luz da manhã incide sobre um objeto, que está na cabeceira da sepultura. Quase cego, vislumbra a imagem de uma santa, toda trabalhada em outro. Fica tonto e deslumbrado. Cai ao lado da imagem, sem entender. Onde estará a sua mãe? Será que a sua sina já não teria se cumprido? Não bastava ter sido devorada pelas formigas, agora some também o seu corpo? Onde mais terá abrigo aquele filho órfão, já que não mais lhe resta o cadáver daquela a quem devia a vida? Apavorado, toma a imagem em seus braços. Ela é linda, assim como fora a escrava Ana. Correndo assustado pelo matagal, o garoto vai atrás do padre da comunidade.
Dona Dove para nesse ponto e olha para as folhas que se balançam do lado de fora da casa, embaladas pelo vento e diz: O Padre disse ao menino, que Ana virou Santa. Um silêncio percorre a sala e eu fico imaginando o que acabara de ser dito. Ao meu lado, o meu avô e a minha mãe, que eu levara para descortinar aquela história, tem os olhos fixos na Senhora, cujos olhos agora faíscam. Uma Santa toda de ouro, com uma coroa cravada de pedras preciosas. Mas o Padre levou a Santa para a Igreja da Penha, a Santa Ana, a nossa Santa Ana. E nunca mais a trouxeram de volta. E depois disso, colocaram um cruzeiro de madeira na sepultura. Ana, desde aquele dia, tem realizado muitos milagres. Vem gente de todos os lugares desse mundo, soltar foguetes, acender velas e agradecer a Santa Ana pelas graças alcançadas. Por isso que construíram aquela capela, moça, perto do túmulo da escrava. E quando eu não estiver mais aqui para contar a história, meus filhos já acreditam nela e estarão aqui para contá-la. Todos nessa casa já fizeram promessas para ela e foram atendidos. Vixe, nem conto às vezes! Nesse momento me lembro de mim mesma, ainda menina, andando pelo caminho que leva até o túmulo da Defunt’Ana. A minha avó Anália, a frente, levando velas e flores. Ouço o estampido dos foguetes. Não estamos sós. Junto conosco, vão o meu avô e algumas pessoas nos acompanhando. Lembro que foi por minha avó que conheci a história da escrava Ana. Olho para a velha Dove, meu avô e minha mãe, ali na mesma sala. E me sinto responsável por repassar adiante aos meus filhos, o que ouvi. Um assombro me toma. E sigo pensando que acabo de descobrir o milagre da Santa Ana: é a história, que não cessa de ser contada. A trajetória da oralidade, que agora sussurra em meus ouvidos.
(Tâmara Rossene)
P.S. Na foto, o cruzeiro da Santa Ana, na Barriguda...

terça-feira, 1 de dezembro de 2015



          Olhamos a cidade do alto de um prédio. Uma menina e uma mulher admirando a paisagem de concreto. Embaixo, inúmeros arranha-céus coalhando o espaço. Neles o dia transcorre, sem que se sintam observadas, as formiguinhas humanas. Um porteiro olha a sua frente, esperando a rotina começar. Um casal de bermudas e havaianas, talvez de férias, compartilham impressões. No térreo, o zelador grita, faz gracejos, cria performances para chamar a atenção. Parece ter sonhado outro espaço para si.
          Aponto cada uma dessas imagens e vou mostrando a minha pequena aprendiz: o restaurante e a arrumação das mesas, o posto de gasolina e a fila indiana de carros coloridos, as repartições públicas com o seu entra e sai. Em cada lugar, uma engrenagem se move. Digo para a menina de olhos arregalados que são organismos vivos, de diferentes tamanhos, que movem a cidade. E sob seu rosto tranquilo e inquisidor, repito: A cidade somos nós compondo essas máquinas. Ela me olha e pergunta o que fazemos então ali paradas, sem funcionar. E saímos imaginando, que peças seremos nós!

P.S. Encontrei essa cena escrita num bloco esquecido. Eu e Mariana, em nossas descobertas... A foto foi tirada em Belo Horizonte, em 2001, na mesma época em que vivenciamos esses fatos.