O
milagre da Santa Ana
Dona
Dove sobre os degraus da cozinha segurando em um pedaço de pau que utiliza para
se apoiar. Deixa atrás de si o grande quintal, com as galinhas livres e
alimentadas. Pela janela que se abre, a serra com pontos brancos, o céu muito
azul e uma brisa fresca. Percorro os olhos pela cozinha que se alcança descendo
dois ou três degraus, avisto um fogão a lenha e uma outra janela que se oferece,
para a vida que corre nos fundos da casa. Passo a uma parede da sala, com
fotografias antigas, cujos personagens me encaram. Começo a pensar na história
que me levou até aquele lugar, uma memória da minha infância, que eu julgara
perdida, mas que a curiosidade me levou a encontrar o fio da meada para
resgatá-la. Um barulho de madeira envelhecida cedendo me desperta do pensamento
longínquo. Dona Dove senta-se a minha frente, com dificuldade. Meu olhar é
então desviado para ela, que começa a me contar sobre a história da Santa Ana
ou Defunt’Ana, como alguns a chamam, da qual acabo de visitar o túmulo, dali a
menos de um quilômetro. A história é do tempo em que Ibotirama era cortada por
levas de animais, atravessando os seus domínios. No tempo em que os vapores
singravam as águas do rio São Francisco. Por ali, Senhores poderosos eram
proprietários de muitos escravos. Ela ensaia um sorriso, mas não chega a esboçá-lo
e diz que ouviu a história do seu pai e que o seu avô também a contava e que de
lá para cá, já se passaram muitos anos. Olha para o alto, como se tentasse
calcular o tempo decorrido, mas desiste.
Ana
era uma escrava que morava naquelas bandas. E cometeu um crime muito grave, aos
olhos do homem que detinha a sua posse. Ana cometeu o bárbaro crime de
engravidar. O dono de Ana não perdoou o seu erro e tratou de escrever a sua
sentença. Imagino quem seria o pai do filho de Ana. Se algum escravo encantado
com a sua beleza, se um filho do seu Senhor, ou se o próprio dono, que não esperava
aquele desfecho. Não se sabe ao certo, quantos anos se passaram até que Ana
pudesse cumprir o que lhe fora destinado. Mas o seu filho já havia nascido e já
era um pouco crescido. A mando do Senhor, dono de Ana, abrem um buraco e jogam
nele centenas de formigas, que logo mais, se alimentariam da carne da pobre
escrava. Ana é morta pelas picadas dos insetos. Agonizando calada até que o seu
destino se cumprisse. E o seu corpo estaria entregue ao relento, embora a
paisagem da Barriguda tenha uma aura de encantamento, com as suas serras e o
vento que em alguns períodos não cessa. Não fosse o seu filho, ter lhe
arrastado o corpo e colocado sobre um pedaço de couro, levando-o para ter um
sepultamento justo, como qualquer alma deste mundo, mereceria. Cava então a
cova da mãe, que o alimentou e o amou. Ali deposita a sua dor e o corpo de Ana.
E passa a peregrinar para aquele local, com suas rezas e seu lamento, algumas
vezes, ao longo dos dias.
Poucos
dias se passaram e quando o menino parte para mais uma hora de prantear a sua
mãe, é tomado por um susto enorme. A cova jaz aberta e vazia. Fica confuso.
Procura imaginar o que aconteceu, para lhe tirarem a única coisa que lhe
restara. A luz da manhã incide sobre um objeto, que está na cabeceira da
sepultura. Quase cego, vislumbra a imagem de uma santa, toda trabalhada em
outro. Fica tonto e deslumbrado. Cai ao lado da imagem, sem entender. Onde estará
a sua mãe? Será que a sua sina já não teria se cumprido? Não bastava ter sido
devorada pelas formigas, agora some também o seu corpo? Onde mais terá abrigo
aquele filho órfão, já que não mais lhe resta o cadáver daquela a quem devia a
vida? Apavorado, toma a imagem em seus braços. Ela é linda, assim como fora a
escrava Ana. Correndo assustado pelo matagal, o garoto vai atrás do padre da
comunidade.
Dona
Dove para nesse ponto e olha para as folhas que se balançam do lado de fora da
casa, embaladas pelo vento e diz: O Padre disse ao menino, que Ana virou Santa.
Um silêncio percorre a sala e eu fico imaginando o que acabara de ser dito. Ao
meu lado, o meu avô e a minha mãe, que eu levara para descortinar aquela
história, tem os olhos fixos na Senhora, cujos olhos agora faíscam. Uma Santa
toda de ouro, com uma coroa cravada de pedras preciosas. Mas o Padre levou a
Santa para a Igreja da Penha, a Santa Ana, a nossa Santa Ana. E nunca mais a trouxeram
de volta. E depois disso, colocaram um cruzeiro de madeira na sepultura. Ana,
desde aquele dia, tem realizado muitos milagres. Vem gente de todos os lugares desse
mundo, soltar foguetes, acender velas e agradecer a Santa Ana pelas graças
alcançadas. Por isso que construíram aquela capela, moça, perto do túmulo da
escrava. E quando eu não estiver mais aqui para contar a história, meus filhos
já acreditam nela e estarão aqui para contá-la. Todos nessa casa já fizeram
promessas para ela e foram atendidos. Vixe, nem conto às vezes! Nesse momento
me lembro de mim mesma, ainda menina, andando pelo caminho que leva até o
túmulo da Defunt’Ana. A minha avó Anália, a frente, levando velas e flores.
Ouço o estampido dos foguetes. Não estamos sós. Junto conosco, vão o meu avô e
algumas pessoas nos acompanhando. Lembro que foi por minha avó que conheci a
história da escrava Ana. Olho para a velha Dove, meu avô e minha mãe, ali na
mesma sala. E me sinto responsável por repassar adiante aos meus filhos, o que
ouvi. Um assombro me toma. E sigo pensando que acabo de descobrir o milagre da
Santa Ana: é a história, que não cessa de ser contada. A trajetória da
oralidade, que agora sussurra em meus ouvidos.
(Tâmara Rossene)
P.S. Na foto, o cruzeiro da Santa Ana, na Barriguda...
P.S. Na foto, o cruzeiro da Santa Ana, na Barriguda...