terça-feira, 4 de abril de 2023

                                       



Na minha infância, quando eu morei um período em Barreiras, chegar ao povoado da Passagem, era sinal de que eu estava prestes a abraçar meus avós, Anália e Miné. A travessia de balsa até a outra margem, eu fazia com os dedinhos se movendo nas mãos entrecruzadas, coração aos saltos, doida prá sentir o cheiro do escaldado de farinha, o gosto do bolo de nata, dos bolinhos de comida na gamela; prá ouvir meu apelido "Minha", sendo pronunciado com tamanho  afeto. O trajeto de 40 minutos durava uma eternidade.. Mas até alcançar o outro lado, o rio me acolhia como se me ninasse, no balanço da embarcação, enquanto a saudade ia ficando cada vez menor, como as pessoas observando na beira d'água. Chegar lá, significava ser rodeada de encantamento e  amor.

Hoje eu vi o dia amanhecer nesse ponto, onde meu peito marcava o compasso da chegada, naquela época, quando a Passagem era um fervilhar de pessoas, tão distante da solidão do agora. A alvorada que surgiu, lançou luzes sobre minhas memórias, da menina feliz que eu fui um dia. Da ponte que interliga esse território, ao da mulher sedenta que me tornei

Amanhecer nesse ponto,me fez recordar o poeta, que disse:"eu quero meus braços abertos, de frente prá o rio''.

E me devolveu o sopro do sentido de chegar e permanecer nestas bandas ribeirinhas. Porque hoje eu também cruzo um rio. E embora esse rio que ora atravesso seja revolto, eu também tenho encontrado amor e acolhimento a minha volta.

Obrigada ao moço gentil, que cruzou estas águas;me transportou, fotografou e cedeu a fotografia,além de aquecer o coração da menina e da mulher, abrindo este portal...



terça-feira, 3 de janeiro de 2023

 Há um ano atrás, eu iniciava 2022, viajando para Caldas Novas - Go. Seis meses pós avc. Completamente dependente da cadeira de rodas e das pessoas. Precisando de ajuda até para ir ao banheiro. Dormindo de fralda e com um plástico sobre o colchão. Insegura, frágil, amedontrada. Com nedo de entrar até na piscinaS endo carregada por Gabriel e Mariana(dois loucos...rs), prá todos os lugares.Um ano depois, 2023 me encontra liberta da cadeira e das fraldas. Independente no banheiro e andando de bengala. Ainda insegura e frágil. Ainda temerosa. Mas certa de que, em passos vacilantes, eu sigo mais um ano. E grata a Deus  e a todos que tem  trilhado esse caminho comigo, ainda que me olhando a distância (sim, há os que preferem estar assim, e tudo bem)...



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sábado, 26 de novembro de 2022

 Diário do avc - parte 1:

Eu sempre acho que tudo começou com o covid. E os próprios médicos levantaram essa possibilidade, mas não foram conclusivos .

Em meio ao pânico da pandemia, eu descobri que alguns servidores do fórum haviam sido contaminados. Como o contato entre eles e os servidores da Promotoria era frequente e soube que a  Prefeitura estava testando muita gente, comecei uma batalha, para que nós fossemos testados. No dia do teste, acordei com a dor de garganta que começara na véspera. Já no LACEN, crise de ansiedade e seus sintomas conhecidos há dias: respiração ofegante, mãos suando muito, mau estar estranho. Comecei a pensar: e se eu tiver com covid? Passei a fazer um check list mental: não havia tido contato com ninguém  contaminado; saí de casa para trabalhar apenas no dia anterior, depois de um mês enclausurada; usei a máscara sempre; lavei as mãos com frequência, etc., etc. Mas nos últimos dias um cansaço... Passei o dia no itmo insano de sempre. Fazer comida, limpar a casa, cuidar para que tudo estivesse impecavelmente no lugar. A voz de Mariana em minha cabeça: mamãe, você tem toc. Conferi a posição das plantas. Na geladeira os potes todos arrumados. Pia limpa. Era final de tarde.Para um carro na porta. Marcelo atrás sorrindo largo. Reconheço o uniforme temido da vigilância sanitária em duas mocas que pedem licença e entram na sala. Eu começo a falar que não posso estar de covid. Elas sorriem sem graça e confirmam ditando instruções. Pedem meu braço e colocam nele uma pulseira amarela. Marcelo e meu filho João recebem pulseiras azuis. Elas selam nosso compromisso com o isolamento. As meninas saem e nós nos olhamos desesperados. Concordamos que eu ficaria no quarto confinada. Eu entro no quarto e tranco a porta atrás de mim, sob olhares assustados. Eu ficaria por 15 dias trancafiada naquele quarto, recebendo as refeições na porta,enquanto me segurava para não me jogar nos braços dos dois moradores daquela casa, que se colocavam a quilômetros de distância da fonte de contaminação. Soube então, que o vigilante da Promotoria também estava de covid, mas mal nos falamos na véspera, quando precisei ir até o meu local de trabalho, então de quem partiu o contágio, era uma incógnita para nós.

 A moça me contou essa estória com um sorriso maroto parando nos lábios...

Um rapaz passava todos os dias em sua porta lhe prometendo viagens para a capital. Ela o ignorava. Tempos mais tarde soube que ele sempre ia a capital para tratamento de um problema mental. Mas nunca demonstrara qualquer sentimento por ele,embora distribuísse sorrisos todas as vezes em que o via, porque o achava engraçado.

Fato é que num certo dia viu o rapaz aos cochichos com o seu sobrinho de oito anos. Alguns dias mais tarde,  o garoto entrou em casa agarrado a  um saco de salgadinhos e um refrigerante, cabeça baixa. Ela pediu a ele: me dá um pouco? me dá um gole? 

O  garoto aumentou o passo, abaixou mais ainda a cabeça e disse um -eu não posso, quase sem que a voz saísse direito. Depois falou baixinho: eu não posso, porque eu vendi a Senhora. Como é o negócio, menino?

O garoto nervoso explicou, apontando o tal sujeito: Por causa que ele disse: ajeita sua tia prá mim que eu te dou um negócio. Eu disse a ele, então me dá o negócio primeiro.

O menino suspirou e mostrou então o salgadinho e o refrigerante nas mãos.

Só aí a história ficou esclarecida para a moça. Que passou a pensar sorridente, no quanto valia para aquela criança, a quem devotava tanto amor.  A essa altura, já não valia mais nada, pois o garoto já acabara com o fruto da negociação.  

Quando a moça me contou esse caso e me apresentou o menino, a minha curiosidade fez com que eu perguntasse a ele, porque vendera a tia. O garoto se apressou a responder que estava com fome.

Sim, meus caros, porque aa crianças não tem fome apenas da comida que lhe chega a mesa, mas de tudo aquilo que as vezes não tem acesso e sentem vontade. Como certos brinquedos, certas guloseimas. E porque não, salgadinho e refrigerante. Mesmo que para isso, tenham que vender a própria tia.

sábado, 22 de outubro de 2022

 Me sinto presa nesse corpo

 pós avc.

Meio paralisado. 

Estagnado.

A mercê.


E em minhas memórias

só você.

Nessa cela

do sofrer...

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

 Em minha solitude

eu encontro você.

Mão, beijo, cheiro,

calor.

Nossa solidão foi o alarido.

Sua solitude

nos afastou...



quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Memórias políticas I 


Das memórias de minhas andanças em campanha política com vovô Minrvino, lembro quando era preciso escrever o voto nas cédulas e os candidatos mandavam fazer umas forminhas de papelão com os números. O eleitor, mesmo analfabeto, a custa de muito treino, percorria a forminha com a caneta e aprumava o voto.

Num certo dia, eu não sei em que comunidade estávamos, mas eu era uma criança de uns nove anos e já havia aprendido como se treinava um eleitor a exercer a cidadania. Me trouxeram uma moça na casa dos trinta e poucos anos e me mandaram ensiná-la. Coloquei a forminha de papelão em cima do papel que simulava uma cédula. A moça, que tinha problemas mentais, transpirava muito. Eu segurei em suas mãos trêmulas e fui ajudando-a  a perccorrer os números com a caneta. Primeiro Prefeito, depois vereador. Ela dava risinhos nervosos. Eu, didática, dizia você consegue, falta pouco. A moça ria mais ainda e suava. Eu olhei os seus riscos tortos e senti compaixão. Duas semanas depois eu soube  que a moça havia sido encontrada afogada num riacho. Eu senti vergonha. E pedi perdão em silêncio por tê-la inquietado em seus últimos dias. E assim eu segurei nas mãos de tantos idosos igualmente trêmulas, envergonhados por não saberem se desvencilhar sozinhos no papel. E apesar de ajudá-los a vencer o medo, muitas vezes, era eu quem sentia vergonha, em ocupar aquele lugar, num país repleto de analfabetos e desiguais. hoje eu sinto ter aprendido essa lição tão cedo...