quinta-feira, 25 de março de 2021

 

Observo a Praça vazia, no cais, que recebeu o nome de Mãe Josina. Sempre que pergunto quem foi aquela mulher, eu escuto apenas que foi uma parteira. Há anos indago sobre a sua origem, a sua família, o seu rosto. E a única palavra que a define é ter sido parteira. Me lembrei que certa vez o meu pai me contou, que colocaram o nome na Praça, como se reverenciassem “aquela mulher”, mas que a imagem que mais marcou a existência dela para ele, foi justamente a sua morte. E descreveu como acompanhou o enterro triste, com duas ou três pessoas, num cenário empobrecido, sem muitas flores, nem velas, nem rezas, nem as crianças que chegaram ao mundo por suas mãos, chorando por ela. Por isso quando ele ouviu o nome que levaria a Praça, as homenagens, as reverências, a placa, os discursos, ele recordava com tristeza, que ela se fora como se não houvesse existido...

Essa lembrança me levou até o meu tio Pedro Américo, irmão do meu pai e assim como ele, guardião de tantas memórias, de uma Ibotirama distante! Foi através dele, que descobri que a primeira Praça a ter esse nome, foi a dos Correios, onde hoje é a Praça da Bandeira. Ele vai me contando, que Mãe Josina era filha de Oliveira dos Brejinhos. Uma mulher negra, certamente descendente de escravos, que nascera pelos idos de 1800 e pouco. Não sabiam quem eram os seus parentes, por quem fora criada, nem por quais ruas ou calçadas vivera. Ela não teve filhos.  Era uma mulher de vida livre, num tempo em que essa escolha, era pecado mortal. Contam que foi parar em Ibotirama, depois de uma briga feia, entre dois homens, pelos carinhos dela. Nesse ponto, fiquei pensando quem seriam esses homens, se foram carinhos desinteressados e quais os limites da vida livre que levava.

O meu tio afasta o meu pensamento e vai me mostrando a Josina que conheceu. A que tinha ao que parece, vinte e poucos anos, quando seguiu o seu rumo a pé, de Oliveira dos Brejinhos até Ibotirama, porque naquela época não havia transporte, esse só chegou através de um caminhão, alguns anos mais tarde. A Josina que chegou a Ibotirama e se dedicou totalmente a ajudar as mulheres (mesmo aquelas que condenariam o seu passado), a aliviar as dores e as angústias do parto e a receber em seus braços, os meninos que irrompiam nesse mundo. Meu tio Pedro foi um deles. Me diz que Josina foi a sua “mãe de pegação”. Assim como foi dos meus outros tios: Irineu, Filemon, Zé Baga, Nita e Maria, a menina que durou apenas três meses de vida. Sinto admiração e respeito em sua voz, quando me conta que Mãe Josina curou o umbigo deles com óleo de mamona, mas que o de Tia Nita foi curado com mercúrio cromo, que ainda era uma substância pouco utilizada na cidade e as mães aceitavam o seu uso com desconfiança. E vai desfiando o seu fio de lembranças, imagino que olhando ao longe, como se estivesse na rua Primeiro de Janeiro, ouvindo os passos silenciosos dos fantasmas do seu tempo, vagando por debaixo dos pés de manguba. Deslizando silenciosos sob a mangueira que resiste na Praça Deraldino Lino de Souza (segundo ele, a árvore mais antiga de Ibotirama), do tempo em que a cidade ainda tinha cancelas a lhe guardar (uma perto da ponte, outra no Vale do Amanhecer e outra próxima a estrada da Lapa). Recorda daquela mãe que primeiro o tomou nos braços, tomando café na casa da finada Dona Ruzu, de quem era muito amiga. Das vezes em que a encontrava na rua e assim como faziam muitos moradores da cidade, pedia-lhe a benção e beijava-lhe a mão. Reflete que Mãe Josina fez desse ofício em ajudar na chegada das crianças, quase sempre sadias, um sacerdócio. Depois finaliza, saudoso das memórias que lhe escapam das mãos, concluindo que Mãe Josina faleceu nos anos setenta, mas sem muita certeza do ano. Me diz que a data pode ser confirmada no cartório, onde certamente deve constar a certidão de óbito.

Volto a Praça. Um lugar de todo mundo. E de ninguém. Por onde chegam crianças, chorosas ou felizes. Por onde caminham mulheres livres. Por onde os bancos guardam angústias e alegrias. Assim como foi Josina. Mãe de todo mundo. E de ninguém, ao tomar nos braços, os filhos de outros. Ao trazer ao mundo crianças chorosas ou felizes e entregar nos braços de outras.  Ao curar as dores e as alegrias da procriação e depois seguir esquecida. Assim como a Praça, que depois de servir de lugar de abrigo, de cura, do despertar de sentimentos diversos, se esvazia, na sombra da noite, assim como nebulosas, sobre as lembranças...