quarta-feira, 29 de abril de 2020

Essa coisa de pedir a benção é uma marca forte da minha infância e adolescência. Me lembro que não podia faltar jamais, em nenhum dos cumprimentos aos meus avós, paternos ou maternos. Às vezes, eu fazia isso correndo, pensando que meio minuto sequer, parando e pedindo: benção vovó, parecia que iria atrasar uma vida. E aí, antes que eu pensasse em fugir sem ser notada, eu ouvia: Dê cá a benção! Mas de todos os desejos e profecias lançadas: "Deus te dê saúde"; "Deus te dê muitas riquezas"; "Deus te dê inteligência"; "Deus te faça feliz"; "Deus te guie", e por aí adiante, desde muito cedo, eu era tocada em todas as vezes em que ouvia de vovô Irineu (meu avô paterno): "Deus te crie para o bem". E cada vez em que o tempo passava e eu fui tendo maior compreensão sobre o que me rondava, essa frase assim profetizada, me parecia de uma grandeza! Porque não era sobre a minha saúde física, nem sobre os tesouros materiais que eu acumularia, nem nada que rondasse apenas o meu próprio umbigo. Ser criada para o bem era seguir para ser pessoa digna; para ser alguém que existisse para além do meu núcleo familiar e das minhas conquistas pessoais. Era ser criada para pensar nas consequências das minhas ações, no senso coletivo, humanitário; no outro, nos outros... E no agora, muitas vezes em que eu me encontro nessa ânsia de proferir bençãos sobre os meus filhos, eu penso que os quero sendo criados para o bem. São os desejos de vovô Irineu, de que os seus, sigam pelo tempo, sendo mais do que mero indivíduos sobre a  terra. São os desejos de meu avô, ecoando pelos anos, de que sejam construtores de um novo mundo. Deus te crie para o bem...


P.S. Na foto, vovô Irineu.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Eu ouvi muitas vezes de vovô Minervino, a história de como ele conheceu vovó Anália. Me lembro que na maioria das vezes, ele contava na presença dela, olhando repetidas vezes para o seu rosto, buscando talvez aprovação pela lembrança, ou lhe arrancar algum tipo de afeto, ou mostrar que a memória de quando a viu pela primeira vez, nunca o abandonara. E eu achava lindo a forma como ela apenas sorria e dizia: ai, ai. Aliás, esse "ai, ai"da minha avó, tinha uma sonoridade e um significado que só nós, que passamos um longo tempo ao seu redor, sabemos o que representava, mas não sabemos explicar. O meu avô olhava para a sua Anália e dizia que a primeira vez em que a viu, ela morava na rua Primeiro de Janeiro, com Antonio Matias, meu bisavô e a sua companheira, Zulmira, que era a madrasta da minha avó. E ele contava que ele, menino que morava na roça, vinha às vezes até a "cidade" para fazer compras. Que estava esperando alguém próximo a residência do meu bisavô (não sei se a pessoa entrou no mesmo lugar). De repente avista aquela menina, com a vassoura na mão, varrendo o corredor da casa, com a porta aberta. Segundo vovô, ela era tão magrinha, que parecia que ia se partir ao meio. E que ela e a vassoura pareciam algum tipo de parceiras, ambas de igual forma, fininhas. Minervino então achou aquela moça de vestido estampado, bailando com a vassoura entre os braços, "uma coisa linda"! E ficou do lado de fora olhando hipnotizado prá sua ninfa. Ela então passou a sorrir alto. Ele descrevia isso, imitando os sons: kkkkkkkkk, kkkkkkkkkkk. E Zulmira, a madrasta da minha avó, gritava lá de dentro: varre essa casa, Anália! Anália olhava pro moço e o moço devolvia o olhar prá Anália. E ela valsava com a vassoura, varrendo o mesmo lugar, para não perder o ponto exato da vista e do olhar. E Zulmira repetitiva: varre essa casa Anália!. Anália, olho fixo no moço que a fitava, em sintonia, vassoura indo e vindo: kkkkkkkkk, kkkkkkkkk. Ele concluía dizendo que foi embora sem nunca mais ter se apartado daquela lembrança, da moça bonita gargalhando com a vassoura, sem desviar os olhos dos seus.
Só passado algum tempo, Antonio Matias, meu bisavô, levou a sua loja de tecidos para ser instalada na Canabrava, o mesmo lugar onde vovô Minervino morava. E foi à partir daí, que a moça do gargalhar alto, do vestido florido e do corpo esguio, passou a ganhar um novo formato em seu cotidiano.


quinta-feira, 16 de abril de 2020



Era um período difícil aquele. Eu e o meu companheiro havíamos deixado de ser “colaboradores” de multinacionais do setor de telecomunicações, para subcolocações em empregos com os quais não nos afeiçoávamos. Salvador havia se transformado na capital do desemprego e nós viramos estatísticas. Eu passei a dar aula num contrato precarizado de trabalho, numa escola pública da Sussuarana. Dois meses de salário atrasado, meu companheiro correndo como distribuidor de medicamentos em farmácias de bairros. Fizemos uma viagem do céu ao purgatório, em nossas carreiras profissionais. Todos os dias eu saía de casa, para encontrar uma escola depredada em sua estrutura física e nos laços que se estabeleciam entre alunos, professores e corpo de funcionários. Descobri que apesar das anotações na caderneta de matemática, em todas as séries, com conteúdos tido como dados, raríssimos alunos meus da quinta a oitava série, sabiam efetuar as quatro operações. Um dia uma aluna me questionou: Professora, conta de vezes é igual a subtrair? Eu estava repleta de problemas pessoais, mas precisava ensinar algo naquele lugar. Posicionar a voz era um problema, separar os interessados era outro. No horário do lanche as carteiras eram atiradas para o alto. Eu estava num cenário de guerra. Resolvi então copiar o livro de probleminhas da primeira série da minha filha e começar pela tabuada. Passei a montar jogos, em que meninos e meninas disputavam. Percebi então que a linguagem da disputa, da luta, da sobrevivência, era conhecida por todos. A estratégia foi montada em cima de combates, porque todos eles sabiam a linguagem de lutar pela vida. E assim a tabuada foi deixando de ser uma incógnita na vida daqueles meninos. Mas eu sempre me perguntava se além do salário minguado, o que mais eu tinha para fazer ali, saindo de casa todos os dias sem qualquer motivação, numa das fases mais difíceis em que tinha mergulhado.
Foi num dia assim, que eu fiquei na escola no horário do almoço e uma professora chamada Regina, evangélica, enérgica, acolhedora, me disse que havia criado um grupo há alguns meses com os alunos mais complicados, prá fazer uma leitura reflexiva da Bíblia, no horário do almoço. Que ninguém acreditou, mas que ela queria me mostrar o resultado. Eu fui desmotivada e descrente. Cheguei naquela sala, com um grupo de 12, 15 jovens lendo  o evangelho e entoando louvores. Eu ali, sem saber porque, mas tão absorta em meus próprios abismos. Pensando naqueles jovens como mero coitados, como vítimas de um sistema cruel. Que diferença faria eu naquele lugar? 
De repente um daqueles meninos me pede para ficar no meio do círculo e diz que quer orar por mim. Eles ligam um pequeno cd player e toca uma música que eu nunca tinha ouvido, a cantora era Ludmila Ferber: “se tentarem matar os teus sonhos, sufocando o teu coração, se lançaram você numa cova”... E os meninos, periféricos, em condições de desigualdade, sem estrutura sanitária em suas casas, sem escola digna, sem alimentação decente, estendem as mãos sobre mim e começam a pedir a Deus o que eles não tinham. E rogaram por prosperidade, saúde, sonhos realizados. E eu fui aos poucos me emocionando. Ali eu percebi que eu, a professora com formação, a que ia todos os dias contrariada na minha labuta, por se julgar muito além daquele lugar, não tinha nenhum senso de humanidade e acolhimento para dar a eles. Quem era eu? Depois de cantarem ao meu redor e de profetizarem e de clamarem aos céus por mim, esquecendo as próprias dores, a minha vida se transformou... Me vieram tantas realizações! Mas de lá para cá, a maior lição, a que nunca foi esquecida, foi o meu senso de pequenez...


P.S. A foto é da época.