sábado, 26 de novembro de 2022

 Diário do avc - parte 1:

Eu sempre acho que tudo começou com o covid. E os próprios médicos levantaram essa possibilidade, mas não foram conclusivos .

Em meio ao pânico da pandemia, eu descobri que alguns servidores do fórum haviam sido contaminados. Como o contato entre eles e os servidores da Promotoria era frequente e soube que a  Prefeitura estava testando muita gente, comecei uma batalha, para que nós fossemos testados. No dia do teste, acordei com a dor de garganta que começara na véspera. Já no LACEN, crise de ansiedade e seus sintomas conhecidos há dias: respiração ofegante, mãos suando muito, mau estar estranho. Comecei a pensar: e se eu tiver com covid? Passei a fazer um check list mental: não havia tido contato com ninguém  contaminado; saí de casa para trabalhar apenas no dia anterior, depois de um mês enclausurada; usei a máscara sempre; lavei as mãos com frequência, etc., etc. Mas nos últimos dias um cansaço... Passei o dia no itmo insano de sempre. Fazer comida, limpar a casa, cuidar para que tudo estivesse impecavelmente no lugar. A voz de Mariana em minha cabeça: mamãe, você tem toc. Conferi a posição das plantas. Na geladeira os potes todos arrumados. Pia limpa. Era final de tarde.Para um carro na porta. Marcelo atrás sorrindo largo. Reconheço o uniforme temido da vigilância sanitária em duas mocas que pedem licença e entram na sala. Eu começo a falar que não posso estar de covid. Elas sorriem sem graça e confirmam ditando instruções. Pedem meu braço e colocam nele uma pulseira amarela. Marcelo e meu filho João recebem pulseiras azuis. Elas selam nosso compromisso com o isolamento. As meninas saem e nós nos olhamos desesperados. Concordamos que eu ficaria no quarto confinada. Eu entro no quarto e tranco a porta atrás de mim, sob olhares assustados. Eu ficaria por 15 dias trancafiada naquele quarto, recebendo as refeições na porta,enquanto me segurava para não me jogar nos braços dos dois moradores daquela casa, que se colocavam a quilômetros de distância da fonte de contaminação. Soube então, que o vigilante da Promotoria também estava de covid, mas mal nos falamos na véspera, quando precisei ir até o meu local de trabalho, então de quem partiu o contágio, era uma incógnita para nós.

 A moça me contou essa estória com um sorriso maroto parando nos lábios...

Um rapaz passava todos os dias em sua porta lhe prometendo viagens para a capital. Ela o ignorava. Tempos mais tarde soube que ele sempre ia a capital para tratamento de um problema mental. Mas nunca demonstrara qualquer sentimento por ele,embora distribuísse sorrisos todas as vezes em que o via, porque o achava engraçado.

Fato é que num certo dia viu o rapaz aos cochichos com o seu sobrinho de oito anos. Alguns dias mais tarde,  o garoto entrou em casa agarrado a  um saco de salgadinhos e um refrigerante, cabeça baixa. Ela pediu a ele: me dá um pouco? me dá um gole? 

O  garoto aumentou o passo, abaixou mais ainda a cabeça e disse um -eu não posso, quase sem que a voz saísse direito. Depois falou baixinho: eu não posso, porque eu vendi a Senhora. Como é o negócio, menino?

O garoto nervoso explicou, apontando o tal sujeito: Por causa que ele disse: ajeita sua tia prá mim que eu te dou um negócio. Eu disse a ele, então me dá o negócio primeiro.

O menino suspirou e mostrou então o salgadinho e o refrigerante nas mãos.

Só aí a história ficou esclarecida para a moça. Que passou a pensar sorridente, no quanto valia para aquela criança, a quem devotava tanto amor.  A essa altura, já não valia mais nada, pois o garoto já acabara com o fruto da negociação.  

Quando a moça me contou esse caso e me apresentou o menino, a minha curiosidade fez com que eu perguntasse a ele, porque vendera a tia. O garoto se apressou a responder que estava com fome.

Sim, meus caros, porque aa crianças não tem fome apenas da comida que lhe chega a mesa, mas de tudo aquilo que as vezes não tem acesso e sentem vontade. Como certos brinquedos, certas guloseimas. E porque não, salgadinho e refrigerante. Mesmo que para isso, tenham que vender a própria tia.

sábado, 22 de outubro de 2022

 Me sinto presa nesse corpo

 pós avc.

Meio paralisado. 

Estagnado.

A mercê.


E em minhas memórias

só você.

Nessa cela

do sofrer...

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

 Em minha solitude

eu encontro você.

Mão, beijo, cheiro,

calor.

Nossa solidão foi o alarido.

Sua solitude

nos afastou...



quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Memórias políticas I 


Das memórias de minhas andanças em campanha política com vovô Minrvino, lembro quando era preciso escrever o voto nas cédulas e os candidatos mandavam fazer umas forminhas de papelão com os números. O eleitor, mesmo analfabeto, a custa de muito treino, percorria a forminha com a caneta e aprumava o voto.

Num certo dia, eu não sei em que comunidade estávamos, mas eu era uma criança de uns nove anos e já havia aprendido como se treinava um eleitor a exercer a cidadania. Me trouxeram uma moça na casa dos trinta e poucos anos e me mandaram ensiná-la. Coloquei a forminha de papelão em cima do papel que simulava uma cédula. A moça, que tinha problemas mentais, transpirava muito. Eu segurei em suas mãos trêmulas e fui ajudando-a  a perccorrer os números com a caneta. Primeiro Prefeito, depois vereador. Ela dava risinhos nervosos. Eu, didática, dizia você consegue, falta pouco. A moça ria mais ainda e suava. Eu olhei os seus riscos tortos e senti compaixão. Duas semanas depois eu soube  que a moça havia sido encontrada afogada num riacho. Eu senti vergonha. E pedi perdão em silêncio por tê-la inquietado em seus últimos dias. E assim eu segurei nas mãos de tantos idosos igualmente trêmulas, envergonhados por não saberem se desvencilhar sozinhos no papel. E apesar de ajudá-los a vencer o medo, muitas vezes, era eu quem sentia vergonha, em ocupar aquele lugar, num país repleto de analfabetos e desiguais. hoje eu sinto ter aprendido essa lição tão cedo...

quarta-feira, 23 de março de 2022

 Um ano finda. Eu recomeço... Muito de mim já terminou. Pouco ainda é recomeço. Mas vivo o movimento do reaprender. Pós AVC, tudo é recomeço. Todo dia reaprendo. A andar. A sentar. A socializar. A existir perante o mundo. E o mundo é esse poço. Onde me afundo. E reexisto.. Um tanto de mim resiste. Outro tanto INSISTE nessa lógica. Desde o dia em que mal acordei e já era noticiada com o coágulo estampado numa máquina. Desde quando metade de mim era paralisia. Desde aquele dia eu sou confusão. Metade de mim sabe que existe. A outra metade RESISTE nesse jogo de insistência. E desde sempre nuca mais serei a mesma. Eu insisto na incerteza. Como todo mundo. Afundo nesse poço profundo. Ah, mundo! Serei feliz? Voltarei a ser eu mesma? Ninguém sabe. Eu luto com todas as armas que me restaram. As garras que desenvolvi antes de me resumir em ANTES E DEPOIS DO AVC. Em minhas memórias, estou impregnada de você. Nós nos transformamos num amontoado de memórias. Recortes que sofregamente alimentamos.  Nenhum plano vingou. Mas estamos nos meninos. E eles em nós.Nosso passaporte e fortaleza. A mesa continua posta. E o sonho da rota. Desde antes. E após.


Caldas Noovas, 30 de dezembro de 2021.