domingo, 18 de julho de 2021
segunda-feira, 26 de abril de 2021
mas não se esqueça
dos que perderam a voz
por falta de crença
dos que não encontram motivos
para persistência
dos que só conhecem a indiferença.
Quando acordar agradeça
mas não se esqueça
das infinitas cabeças
dispostas sobre pratos vazios.
Quando acordar agradeça
mas não guarde a tola pretensão
de que esse rito lhe coloca acima
dos que já perderam a fé e a esperança.
Dos que colecionam tantos dissabores
que cada palavra positiva
naufraga
no vão infindo
das dores...
domingo, 4 de abril de 2021
quinta-feira, 25 de março de 2021
Observo a
Praça vazia, no cais, que recebeu o nome de Mãe Josina. Sempre que pergunto
quem foi aquela mulher, eu escuto apenas que foi uma parteira. Há anos indago
sobre a sua origem, a sua família, o seu rosto. E a única palavra que a define
é ter sido parteira. Me lembrei que certa vez o meu pai me contou, que
colocaram o nome na Praça, como se reverenciassem “aquela mulher”, mas que a
imagem que mais marcou a existência dela para ele, foi justamente a sua morte.
E descreveu como acompanhou o enterro triste, com duas ou três pessoas, num
cenário empobrecido, sem muitas flores, nem velas, nem rezas, nem as crianças
que chegaram ao mundo por suas mãos, chorando por ela. Por isso quando ele
ouviu o nome que levaria a Praça, as homenagens, as reverências, a placa, os discursos,
ele recordava com tristeza, que ela se fora como se não houvesse existido...
Essa
lembrança me levou até o meu tio Pedro Américo, irmão do meu pai e assim como
ele, guardião de tantas memórias, de uma Ibotirama distante! Foi através dele,
que descobri que a primeira Praça a ter esse nome, foi a dos Correios, onde
hoje é a Praça da Bandeira. Ele vai me contando, que Mãe Josina era filha de
Oliveira dos Brejinhos. Uma mulher negra, certamente descendente de escravos,
que nascera pelos idos de 1800 e pouco. Não sabiam quem eram os seus parentes, por
quem fora criada, nem por quais ruas ou calçadas vivera. Ela não teve filhos. Era uma mulher de vida livre, num tempo em que
essa escolha, era pecado mortal. Contam que foi parar em Ibotirama, depois de
uma briga feia, entre dois homens, pelos carinhos dela. Nesse ponto, fiquei
pensando quem seriam esses homens, se foram carinhos desinteressados e quais os
limites da vida livre que levava.
O meu tio
afasta o meu pensamento e vai me mostrando a Josina que conheceu. A que tinha
ao que parece, vinte e poucos anos, quando seguiu o seu rumo a pé, de Oliveira
dos Brejinhos até Ibotirama, porque naquela época não havia transporte, esse só
chegou através de um caminhão, alguns anos mais tarde. A Josina que chegou a
Ibotirama e se dedicou totalmente a ajudar as mulheres (mesmo aquelas que condenariam
o seu passado), a aliviar as dores e as angústias do parto e a receber em seus
braços, os meninos que irrompiam nesse mundo. Meu tio Pedro foi um deles. Me
diz que Josina foi a sua “mãe de pegação”. Assim como foi dos meus outros tios:
Irineu, Filemon, Zé Baga, Nita e Maria, a menina que durou apenas três meses de
vida. Sinto admiração e respeito em sua voz, quando me conta que Mãe Josina
curou o umbigo deles com óleo de mamona, mas que o de Tia Nita foi curado com
mercúrio cromo, que ainda era uma substância pouco utilizada na cidade e as
mães aceitavam o seu uso com desconfiança. E vai desfiando o seu fio de
lembranças, imagino que olhando ao longe, como se estivesse na rua Primeiro de
Janeiro, ouvindo os passos silenciosos dos fantasmas do seu tempo, vagando por debaixo
dos pés de manguba. Deslizando silenciosos sob a mangueira que resiste na Praça
Deraldino Lino de Souza (segundo ele, a árvore mais antiga de Ibotirama), do
tempo em que a cidade ainda tinha cancelas a lhe guardar (uma perto da ponte,
outra no Vale do Amanhecer e outra próxima a estrada da Lapa). Recorda daquela
mãe que primeiro o tomou nos braços, tomando café na casa da finada Dona Ruzu,
de quem era muito amiga. Das vezes em que a encontrava na rua e assim como
faziam muitos moradores da cidade, pedia-lhe a benção e beijava-lhe a mão. Reflete
que Mãe Josina fez desse ofício em ajudar na chegada das crianças, quase sempre
sadias, um sacerdócio. Depois finaliza, saudoso das memórias que lhe escapam
das mãos, concluindo que Mãe Josina faleceu nos anos setenta, mas sem muita
certeza do ano. Me diz que a data pode ser confirmada no cartório, onde
certamente deve constar a certidão de óbito.
Volto a
Praça. Um lugar de todo mundo. E de ninguém. Por onde chegam crianças, chorosas
ou felizes. Por onde caminham mulheres livres. Por onde os bancos guardam angústias
e alegrias. Assim como foi Josina. Mãe de todo mundo. E de ninguém, ao tomar
nos braços, os filhos de outros. Ao trazer ao mundo crianças chorosas ou
felizes e entregar nos braços de outras.
Ao curar as dores e as alegrias da procriação e depois seguir esquecida.
Assim como a Praça, que depois de servir de lugar de abrigo, de cura, do
despertar de sentimentos diversos, se esvazia, na sombra da noite, assim como
nebulosas, sobre as lembranças...
domingo, 21 de fevereiro de 2021
Nas
últimas vezes em que visitei o meu avô, passados alguns minutos, ele sorria e
repetia a frase: “vovô, eu tô com três toisas. Tansada, tum sede e tum fome”.
Era a clássica frase de uma das histórias da minha infância.
Sexta
feira do final da década de 70. Ás cinco e pouco da manhã, vovô Minervino me
levou junto com ele em um táxi, da Vasco da Gama a Igreja do Bonfim, para
assistirmos a primeira missa do dia. Após a celebração, entre um bocejo e
outro, que eu tentava esconder, ele parou nas proximidades da colina sagrada,
para comprar um buquê de flores, para a segunda parada do nosso trajeto: Monte
serrat, na casa da primeira professora dele, Dona Corina. No caminho, eu ia
ouvindo a sua narrativa, de quando aquela moça chegou até a Canabrava, zona
rural de Ibotirama, para dar aulas para meninos como ele, que precisavam ser lapidados.
Ali ensinou leitura, escrita, oratória e até normas de etiqueta. Eu ia
imaginado cada cena, intercalando o olhar entre ele e as flores, apertadas mais
fortes nas mãos do meu avô, a cada lembrança relatada. Da casa da heróica Corina,
da qual infelizmente não me recordo do rosto, nem da voz, partimos para o
Comércio. Paramos no escritório de um dos amigos dele (me parece que o ilustre Dr.
Marcelo Duarte) e ali eu passei não sei quanto tempo, observando como o menino
da Canabrava, ao falar, se colocava em pé de igualdade, com uma figura que ele
me disse ser de tamanha importância. Saímos dali e subimos o elevador Lacerda. Descemos
a rua Chile, subimos a Avenida Sete. Chegamos até o quartel da Mouraria, onde
fizemos mais uma parada. Depois fomos até uma loja de tecidos, onde o meu avô
passou algum tempo escolhendo cortes de panos para vovó Anália. Um deles (um
tecido azul claro), foi presente para mim.
Nesse
ponto, estávamos subindo a rua do Paraíso. Eu, menina frágil, pouco acostumada
a acordar tão cedo e a caminhar tanto num só dia, resistira bravamente até ali,
mas já estava querendo entregar os pontos. Mas tive medo que minha fama de
menina dengosa e cheia de calundus, estragasse tudo e que o meu avô me julgasse
mal e não quisesse mais a minha companhia, em dias como aqueles. Da altura dos
meus seis anos, engolindo as letras, porque parecia ter a língua presa naquela
época, eu usei toda a estratégia que me pareceu mais convincente, para falar
calmamente: - Vovô, eu tô com três toisas. Tansada, tum sede e tum fome. E esperei,
morrendo de medo. Vovô Minervino deu uma gargalhada alta, atraindo a atenção de
quem passava. E mostrou que o restaurante já estava quase a nossa frente. E
essa história foi repetida centenas de vezes por ele ao longo de nossa
existência.
Hoje
eu fui visitar vovô, que nos seus noventa e um anos, às vezes está lúcido, ás
vezes mistura realidade e fantasia. Quando falei com ele, tive em resposta, um
cumprimento distanciado. Tive medo de não ser reconhecida, depois de uns 20
dias sem vê-lo. Depois de 30 segundos, ele começou a sorrir e disse: “vovô, eu
tô com três toisas”. Sorrimos juntos. E fui percebendo que enquanto ele vai aos
poucos se despedindo, eu sou parte do único fio que permanece e talvez importe:
a memória...