domingo, 18 de julho de 2021

Fiquei alguns minutos olhando para ele, deitado em posição fetal. Nos últimos dias em que o visitei, só o via assim. Abraçado ao travesseiro, passando as mãos frágeis sobre ele, com os olhos perdidos. Parecia um bebê que acabara de chegar ao mundo. E assim eu fiquei por minutos, observando a vida se esvaindo e meu avô tentando segurá-la, com as forças minguadas que lhe restavam. Meu avô, que atravessou a minha existência como um homem enérgico, agora atravessa a minha alma, quando o vejo se agarrando a linha tênue de se manter vivo, embora tenha perdido as forças para se manter de pé. Vejo os olhos inquietos, como se perscrutasse o silêncio, será que esmiuça as memórias? será que questiona o que virá? ou será que espera, enquanto engole as palavras, que não consegue pronunciar? Ele pede um abraço e eu sinto tristeza. Depois de todas as lutas, será que no final do labirinto, o único desejo e consolo que nos resta, é um abraço?

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Quando acordar agradeça
mas não se esqueça
dos que perderam a voz
por falta de crença
dos que não encontram motivos 
para persistência
dos que só conhecem a indiferença.
Quando acordar agradeça
mas não se esqueça
das infinitas cabeças
dispostas sobre pratos vazios.
Quando acordar agradeça
mas não guarde a tola pretensão
de que esse rito lhe coloca acima
dos que já perderam a fé e a esperança.
Dos que colecionam tantos dissabores
que cada palavra positiva
naufraga
no vão infindo
das dores...

                 (Tâmara Rossene)

quinta-feira, 25 de março de 2021

 

Observo a Praça vazia, no cais, que recebeu o nome de Mãe Josina. Sempre que pergunto quem foi aquela mulher, eu escuto apenas que foi uma parteira. Há anos indago sobre a sua origem, a sua família, o seu rosto. E a única palavra que a define é ter sido parteira. Me lembrei que certa vez o meu pai me contou, que colocaram o nome na Praça, como se reverenciassem “aquela mulher”, mas que a imagem que mais marcou a existência dela para ele, foi justamente a sua morte. E descreveu como acompanhou o enterro triste, com duas ou três pessoas, num cenário empobrecido, sem muitas flores, nem velas, nem rezas, nem as crianças que chegaram ao mundo por suas mãos, chorando por ela. Por isso quando ele ouviu o nome que levaria a Praça, as homenagens, as reverências, a placa, os discursos, ele recordava com tristeza, que ela se fora como se não houvesse existido...

Essa lembrança me levou até o meu tio Pedro Américo, irmão do meu pai e assim como ele, guardião de tantas memórias, de uma Ibotirama distante! Foi através dele, que descobri que a primeira Praça a ter esse nome, foi a dos Correios, onde hoje é a Praça da Bandeira. Ele vai me contando, que Mãe Josina era filha de Oliveira dos Brejinhos. Uma mulher negra, certamente descendente de escravos, que nascera pelos idos de 1800 e pouco. Não sabiam quem eram os seus parentes, por quem fora criada, nem por quais ruas ou calçadas vivera. Ela não teve filhos.  Era uma mulher de vida livre, num tempo em que essa escolha, era pecado mortal. Contam que foi parar em Ibotirama, depois de uma briga feia, entre dois homens, pelos carinhos dela. Nesse ponto, fiquei pensando quem seriam esses homens, se foram carinhos desinteressados e quais os limites da vida livre que levava.

O meu tio afasta o meu pensamento e vai me mostrando a Josina que conheceu. A que tinha ao que parece, vinte e poucos anos, quando seguiu o seu rumo a pé, de Oliveira dos Brejinhos até Ibotirama, porque naquela época não havia transporte, esse só chegou através de um caminhão, alguns anos mais tarde. A Josina que chegou a Ibotirama e se dedicou totalmente a ajudar as mulheres (mesmo aquelas que condenariam o seu passado), a aliviar as dores e as angústias do parto e a receber em seus braços, os meninos que irrompiam nesse mundo. Meu tio Pedro foi um deles. Me diz que Josina foi a sua “mãe de pegação”. Assim como foi dos meus outros tios: Irineu, Filemon, Zé Baga, Nita e Maria, a menina que durou apenas três meses de vida. Sinto admiração e respeito em sua voz, quando me conta que Mãe Josina curou o umbigo deles com óleo de mamona, mas que o de Tia Nita foi curado com mercúrio cromo, que ainda era uma substância pouco utilizada na cidade e as mães aceitavam o seu uso com desconfiança. E vai desfiando o seu fio de lembranças, imagino que olhando ao longe, como se estivesse na rua Primeiro de Janeiro, ouvindo os passos silenciosos dos fantasmas do seu tempo, vagando por debaixo dos pés de manguba. Deslizando silenciosos sob a mangueira que resiste na Praça Deraldino Lino de Souza (segundo ele, a árvore mais antiga de Ibotirama), do tempo em que a cidade ainda tinha cancelas a lhe guardar (uma perto da ponte, outra no Vale do Amanhecer e outra próxima a estrada da Lapa). Recorda daquela mãe que primeiro o tomou nos braços, tomando café na casa da finada Dona Ruzu, de quem era muito amiga. Das vezes em que a encontrava na rua e assim como faziam muitos moradores da cidade, pedia-lhe a benção e beijava-lhe a mão. Reflete que Mãe Josina fez desse ofício em ajudar na chegada das crianças, quase sempre sadias, um sacerdócio. Depois finaliza, saudoso das memórias que lhe escapam das mãos, concluindo que Mãe Josina faleceu nos anos setenta, mas sem muita certeza do ano. Me diz que a data pode ser confirmada no cartório, onde certamente deve constar a certidão de óbito.

Volto a Praça. Um lugar de todo mundo. E de ninguém. Por onde chegam crianças, chorosas ou felizes. Por onde caminham mulheres livres. Por onde os bancos guardam angústias e alegrias. Assim como foi Josina. Mãe de todo mundo. E de ninguém, ao tomar nos braços, os filhos de outros. Ao trazer ao mundo crianças chorosas ou felizes e entregar nos braços de outras.  Ao curar as dores e as alegrias da procriação e depois seguir esquecida. Assim como a Praça, que depois de servir de lugar de abrigo, de cura, do despertar de sentimentos diversos, se esvazia, na sombra da noite, assim como nebulosas, sobre as lembranças...



domingo, 21 de fevereiro de 2021


 

Nas últimas vezes em que visitei o meu avô, passados alguns minutos, ele sorria e repetia a frase: “vovô, eu tô com três toisas. Tansada, tum sede e tum fome”. Era a clássica frase de uma das histórias da minha infância.

Sexta feira do final da década de 70. Ás cinco e pouco da manhã, vovô Minervino me levou junto com ele em um táxi, da Vasco da Gama a Igreja do Bonfim, para assistirmos a primeira missa do dia. Após a celebração, entre um bocejo e outro, que eu tentava esconder, ele parou nas proximidades da colina sagrada, para comprar um buquê de flores, para a segunda parada do nosso trajeto: Monte serrat, na casa da primeira professora dele, Dona Corina. No caminho, eu ia ouvindo a sua narrativa, de quando aquela moça chegou até a Canabrava, zona rural de Ibotirama, para dar aulas para meninos como ele, que precisavam ser lapidados. Ali ensinou leitura, escrita, oratória e até normas de etiqueta. Eu ia imaginado cada cena, intercalando o olhar entre ele e as flores, apertadas mais fortes nas mãos do meu avô, a cada lembrança relatada. Da casa da heróica Corina, da qual infelizmente não me recordo do rosto, nem da voz, partimos para o Comércio. Paramos no escritório de um dos amigos dele (me parece que o ilustre Dr. Marcelo Duarte) e ali eu passei não sei quanto tempo, observando como o menino da Canabrava, ao falar, se colocava em pé de igualdade, com uma figura que ele me disse ser de tamanha importância. Saímos dali e subimos o elevador Lacerda. Descemos a rua Chile, subimos a Avenida Sete. Chegamos até o quartel da Mouraria, onde fizemos mais uma parada. Depois fomos até uma loja de tecidos, onde o meu avô passou algum tempo escolhendo cortes de panos para vovó Anália. Um deles (um tecido azul claro), foi presente para mim.

Nesse ponto, estávamos subindo a rua do Paraíso. Eu, menina frágil, pouco acostumada a acordar tão cedo e a caminhar tanto num só dia, resistira bravamente até ali, mas já estava querendo entregar os pontos. Mas tive medo que minha fama de menina dengosa e cheia de calundus, estragasse tudo e que o meu avô me julgasse mal e não quisesse mais a minha companhia, em dias como aqueles. Da altura dos meus seis anos, engolindo as letras, porque parecia ter a língua presa naquela época, eu usei toda a estratégia que me pareceu mais convincente, para falar calmamente: - Vovô, eu tô com três toisas. Tansada, tum sede e tum fome. E esperei, morrendo de medo. Vovô Minervino deu uma gargalhada alta, atraindo a atenção de quem passava. E mostrou que o restaurante já estava quase a nossa frente. E essa história foi repetida centenas de vezes por ele ao longo de nossa existência.

Hoje eu fui visitar vovô, que nos seus noventa e um anos, às vezes está lúcido, ás vezes mistura realidade e fantasia. Quando falei com ele, tive em resposta, um cumprimento distanciado. Tive medo de não ser reconhecida, depois de uns 20 dias sem vê-lo. Depois de 30 segundos, ele começou a sorrir e disse: “vovô, eu tô com três toisas”. Sorrimos juntos. E fui percebendo que enquanto ele vai aos poucos se despedindo, eu sou parte do único fio que permanece e talvez importe: a memória...

 

P.S. Essa fotografia foi tirada na Barriguda, há alguns poucos anos. Fiquei de longe, observando ele sentado nesse troco, talvez atento as memórias que lhe visitaram, nesse dia...