terça-feira, 28 de agosto de 2018


Eu era uma menina branca, de longos cabelos castanhos, na década de 90. As apresentadoras de TV eram moças loiras e as garotas sonhavam em ocupar o lugar das platinadas Paquitas. Eu nasci numa sociedade que exaltava a pele branca e cresci acreditando que era mais bonita do que as meninas da minha rua na Federação, bairro onde morava em Salvador, na década de 80 e onde eu imaginava reinar entre as garotas negras da minha idade, que segundo me diziam, tinham “cabelo duro e beiço rachado”. Mas em plena década de 90, eu me apaixonei por um garoto negro e embora quisesse passar despercebida vagando com ele pelas ruas, ou me sentar tranquilamente numa sessão de cinema, ou no Campo Grande, não era difícil identificar olhares e dedos apontando em nossa direção. Mais difícil ainda, era me desvencilhar das perguntas e indiretas de pessoas muito, muito próximas. E muito mais difícil ainda, era lidar com os meus próprios preconceitos, com todos os padrões que cresceram ao meu lado, com as minhas convicções de garota branca, de classe média. Aliás, a condição dele, de se sentar numa cadeira próxima a minha, numa escola particular de classe média, serviu muitas vezes de consolo para os questionamentos alheios. E eu volta e meia, respondia: - sim, os pais dele tem formação, casa própria, emprego formal e carro. Anos mais tarde, eu me torno mãe de uma menina negra. E falar com naturalidade disso para as pessoas parecia um pecado: - tá louca? Ela é morena! Olha os cabelos, são encaracolados, a raiz é lisa! Ela é moreninha. Quando comecei a comprar para ela, livros com personagens negros, que não se mostravam subalternos e histórias de heróis negros, muitos queriam saber, porque eu não lhe dava “livros normais”. Dizer para ela para jogar fora os padrões a sua volta e para reafirmar a sua identidade com o que via no espelho, era como uma luta de um soldado contra um batalhão. Tive que me destruir várias vezes para nascer de novo, liberta do que cresci ouvindo. Não havia discursos soando como agora. Travamos lutas solitárias. E hoje, quando vejo tantos posts dizendo que “somos iguais”, algo dentro de mim ainda dói e lateja... 



P.S. A foto é de 1999, com Mariana, no Dique do Tororó.

Um dia tudo será finito...
A mágoa que não cessa
o olhar perdido
tuas mãos sempre abertas
meu grito.
Um dia
nenhuma pegada minha
na porta de casa
nenhum dos rostos de agora me aguardando
 e eu já não olharei com desprezo para os arrogantes.
Nenhuma vírgula
nenhuma dúvida
nenhum pensamento infame.
E nós tolos
nessa lógica
insistindo
que tudo segue
 que tudo é infindo...

P.S. A foto do relógio, na Praça de San Marco, Veneza, 2013.

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Deveria ter uns 80 e poucos anos. Senta-se ao meu lado, aguardando a sua vez no Caixa. Fica me observando por longos minutos e depois pergunta, com um sorriso maldoso: Do que você mais tem medo? Eu passo a divagar: De não conseguir suprir a necessidade dos meus filhos, de morrer de repente, de… Ele me interrompe, aflito e diz: Eu tenho medo de gente sonsa! No princípio achei a frase tola. Mas depois, refletindo sobre acontecimentos recentes, após alguns minutos em silêncio, eu lhe devolvi: É esse meu maior medo! Eu tenho medo de gente sonsa!
E você, que me lê nesse exato momento... Do que tem medo?
Eu tão submersa no cotidiano aflito, que sequer olhei a janela convidativa ao meu lado, quando ele gritou: mamãe! vamos contemplar? um sopro sacolejante sobre mim. Logo eu, que sempre lhe apontei a paisagem e lhe indiquei uma brecha, por onde fugimos das lentes medíocres que insistem em nos ofertar. Por suas mãos pequeninas, um atalho de volta...

P.S. Foto no Morro do Pai Inácio, 2016.
Num dia cai um dentinho, depois outro, depois ele cresce e você se pega fazendo poesia que narra o tempo passando...

Se despeça, moça!
Se despeça!
Deixe a janela aberta

para os acenos
dos segundos que não voltam.
Se despeça, moça!
fugindo a coisas vãs e aos lamentos
porque não se repetem os tormentos.
(não da mesma forma)
Se despeça sem abandonar a altivez
intensa, eloquente
e envolta em um tanto de insensatez.
Fugindo ao frívolo, ao morno e ao que é insonso.
Sendo antagonismos
ora paz, ora confronto.
Se despeça
sendo grata e plena
a um só tempo
porque tudo é movimento
e nesse trajeto do esvair
viver é se despedir.
(Tâmara Rossene)

domingo, 19 de agosto de 2018


A moça derrama vazios a minha frente. Cuida do corpo e por ele se entrega a sacrifícios diários. Compra cremes, fórmulas e horas eternas em academias. Trabalho, diz ela, é o corpo cedendo ao cansaço e as rugas. Trabalho envelhece. E vai destilando os vazios que a compõe. Muitos homens a tem, mas só os que podem suster seus vazios. Não quer saber dos que tem fome. Não a preocupa os que estão sedentos. Mas deseja ver se plena em corpo, músculos, cabelos, pele de seda. E eu a olhá-la, tão absorta em pensamentos inquietos. Abarrotada dos questionamentos alheios. Sedenta de justiça e indignação. Com fome de correr trecho e de percorrer textos. Me retraio. A moça dos vazios parece ser feliz em sua própria ausência...

Os olhos eram grandes e gulosos. Cabelo ralo e dedos compridos levados a boca. A boca, com gosto de mundo. Eu queria sair correndo com ela atada aos meus braços. Fugir do mundo. Às vezes, eu criava estratégias para isso. Talvez se eu pulasse um abismo rumo ao infinito: só nós duas. Depois me via correndo, correndo, até chegar num lugar só nosso. Bastava que pronunciassem a palavra "crescer" perto dela. Não, ela não cresceria! Eu a colocaria tão próxima a mim, que a menina de dedos logos e fortes, não desejaria partir. Ela sorria me olhando e eu lhe confidenciava num olhar, os meus planos secretos. Mas lá no fundo, uma tristeza me assombrava: até quando eu poderia mantê-la assim, hipnotizada sob o meu olhar? ao seu redor, tudo girava e ela já começava a virar a cabecinha para observar...


Mas vendo a fotografia e olhando aqui dentro, compreendo o quanto tem de verdadeiro nesse sorriso que se externa. Eu compreendi que quando o outro segue por caminhos tortuosos, não cabe a mim esse peso. Eu me libertei do peso do outro! Por isso eu continuo com as mesmas piadas sarcásticas em meio a labuta e com o senso de humor me alavancando os dias. Continuo reclamando do excesso de burocratização nas horas corridas, mas com o mesmo olhar atento prás dores que escuto todos os dias. E continuo me sentindo impotente em meio as mazelas alheias, em dores que não sinto na pele, mas que me golpeiam. Eu continuo achando graça de cada história que ouço na voz do meu filho pequeno e ficando encantada com cada narrativa ao telefone, na voz da moça, vinda lá do Planalto Central. Eu continuo tendo idéias absurdas de projetos que vou descartando por mera preguiça. E continuo construindo outros tantos planos. Eu continuo rabiscando poesias no meio das tardes, em meio a pilhas de papéis para cumprir. E continuo me sentindo culpada por isso. E continuo sumindo. E continuo aparecendo do nada e gargalhando. Então esse sorriso que você avalia como mera pose prá fotografia, sou eu caatinga ressurgindo. Lua cheia subindo a serra. Lágrima rolando no meio de uma música alegre de Alceu. Estrada seguindo entre sertão e litoral. Eu continuo...