domingo, 20 de setembro de 2020

 



Antes que o dia termine...

eu quero chorar por todas as mulheres
que misturaram as suas lágrimas
ao sabão escorrendo no tanque
quando as tantas da madrugada
se sentiram sozinhas
e pensaram que não tinham mais perspectivas.

Eu quero chorar por todas aquelas
que silenciaram seus gemidos
quando as horas avançavam
porque não eram de prazer
e adormeceram em travesseiros molhados.

Antes que o dia chegue ao fim
eu quero chorar por todas aquelas mulheres
que continuaram submissas e violentadas
porque se sentiram impotentes.
E por todas que no auge da fragilidade
sentiram a dor das pedras que lhes foram atiradas.

Eu não quero que o dia finde
sem que eu pranteie por cada uma
que desistiu dos seus sonhos
que afogou seus desejos
que acorrentou os seus passos
a dores que só mulheres sabem e sentem.

Antes que esse dia se encerre
eu quero o choro primeiro
da menina rejeitada apenas por se fazer mulher
e quero o choro derradeiro
da mulher que se levantou
e seguiu sem olhar para trás.

Eu quero chorar pelas mulheres da família
pelas estranhas
e pelas conhecidas.
Por aquelas que não estão mais vivas
e pelas que seguem mortas, em vida.

Antes que caia a noite e o dia se despeça
eu quero chorar por todas nós
porque assim existimos
em dias que começam, terminam
recomeçam
em dores que de igual forma se iniciam
e se perpetuam
na sina crua de ser.

E depois do pranto,
ainda que ele se encerre na madrugada
eu seguirei mulher
tendo no meu peito
as muitas dores
lavadas.

(Tâmara Rossene)

domingo, 13 de setembro de 2020


Eu me lembro como você gostava de ser "milico" (embora não gostasse de ser chamado assim). Talvez porque naquele tempo, você não tivesse se dado conta de que os meninos pretos eram os que mais sentiam as balas dos fuzis dos milicos. Os meninos pretos e de riso largo como era o seu. E me lembro como você se sentia imponente sob a farda caprichosamente engomada. Como se ela o levasse para mais além. Como se houvesse um universo paralelo, onde você se sentisse com mais poderes. E me recordo em como eu media meticulosamente as palavras,  porque duvidava daquele lugar e não acreditava naquela lógica, mas não queria silenciar os assobios dos hinos, que você lançava no ar ao amanhecer, porque o seu rosto tinha expressão feliz. Até que você precisou ir mais além, na luta  pela sobrevivência.  E precisou guardar a farda e o traje de gala (impecavelmente engomados) na lembrança e em nosso guarda-roupa. E  foi então que descobriu que a farda não lhe salvaria. Nem do mundo real. Nem mesmo de si. Mas muitos meninos tem os mesmos olhos e o mesmo sorriso que eu conheci em você. E muitos deles também ignoram para onde os fuzis apontam. E ainda sonham que esse universo os salvará...


quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Acordo. Café e correria. Relógio de ponto. Registra papel. Arquiva. Carimba. Pastas no andar de cima. Degraus. A moça senta a minha frente. Ela é um número de protocolo. Eu vomito normas. E prazos. O olho da moça mina. Eu olho o relógio. Registro o ponto. Almoço. Engulo. Corro. Relógio de ponto. Pastas. Enumero papéis. Protocolos. Paro. Por que a moça chorou na minha frente? eu paro de novo e não consigo olhar o relógio. O olho da moça vertendo lágrimas. Descubro que não sou uma máquina. E a moça não era um protocolo. E as normas não consideram as lágrimas. Não durmo. Acordo atrasada. A cadeira vazia a minha frente. Paro e seguro os papéis. Esqueço o relógio. Eu não sou um ponto fixo. E as normas não me prendem mais as engrenagens...