domingo, 13 de dezembro de 2015


O milagre da Santa Ana
 Dona Dove sobre os degraus da cozinha segurando em um pedaço de pau que utiliza para se apoiar. Deixa atrás de si o grande quintal, com as galinhas livres e alimentadas. Pela janela que se abre, a serra com pontos brancos, o céu muito azul e uma brisa fresca. Percorro os olhos pela cozinha que se alcança descendo dois ou três degraus, avisto um fogão a lenha e uma outra janela que se oferece, para a vida que corre nos fundos da casa. Passo a uma parede da sala, com fotografias antigas, cujos personagens me encaram. Começo a pensar na história que me levou até aquele lugar, uma memória da minha infância, que eu julgara perdida, mas que a curiosidade me levou a encontrar o fio da meada para resgatá-la. Um barulho de madeira envelhecida cedendo me desperta do pensamento longínquo. Dona Dove senta-se a minha frente, com dificuldade. Meu olhar é então desviado para ela, que começa a me contar sobre a história da Santa Ana ou Defunt’Ana, como alguns a chamam, da qual acabo de visitar o túmulo, dali a menos de um quilômetro. A história é do tempo em que Ibotirama era cortada por levas de animais, atravessando os seus domínios. No tempo em que os vapores singravam as águas do rio São Francisco. Por ali, Senhores poderosos eram proprietários de muitos escravos. Ela ensaia um sorriso, mas não chega a esboçá-lo e diz que ouviu a história do seu pai e que o seu avô também a contava e que de lá para cá, já se passaram muitos anos. Olha para o alto, como se tentasse calcular o tempo decorrido, mas desiste.
Ana era uma escrava que morava naquelas bandas. E cometeu um crime muito grave, aos olhos do homem que detinha a sua posse. Ana cometeu o bárbaro crime de engravidar. O dono de Ana não perdoou o seu erro e tratou de escrever a sua sentença. Imagino quem seria o pai do filho de Ana. Se algum escravo encantado com a sua beleza, se um filho do seu Senhor, ou se o próprio dono, que não esperava aquele desfecho. Não se sabe ao certo, quantos anos se passaram até que Ana pudesse cumprir o que lhe fora destinado. Mas o seu filho já havia nascido e já era um pouco crescido. A mando do Senhor, dono de Ana, abrem um buraco e jogam nele centenas de formigas, que logo mais, se alimentariam da carne da pobre escrava. Ana é morta pelas picadas dos insetos. Agonizando calada até que o seu destino se cumprisse. E o seu corpo estaria entregue ao relento, embora a paisagem da Barriguda tenha uma aura de encantamento, com as suas serras e o vento que em alguns períodos não cessa. Não fosse o seu filho, ter lhe arrastado o corpo e colocado sobre um pedaço de couro, levando-o para ter um sepultamento justo, como qualquer alma deste mundo, mereceria. Cava então a cova da mãe, que o alimentou e o amou. Ali deposita a sua dor e o corpo de Ana. E passa a peregrinar para aquele local, com suas rezas e seu lamento, algumas vezes, ao longo dos dias.
Poucos dias se passaram e quando o menino parte para mais uma hora de prantear a sua mãe, é tomado por um susto enorme. A cova jaz aberta e vazia. Fica confuso. Procura imaginar o que aconteceu, para lhe tirarem a única coisa que lhe restara. A luz da manhã incide sobre um objeto, que está na cabeceira da sepultura. Quase cego, vislumbra a imagem de uma santa, toda trabalhada em outro. Fica tonto e deslumbrado. Cai ao lado da imagem, sem entender. Onde estará a sua mãe? Será que a sua sina já não teria se cumprido? Não bastava ter sido devorada pelas formigas, agora some também o seu corpo? Onde mais terá abrigo aquele filho órfão, já que não mais lhe resta o cadáver daquela a quem devia a vida? Apavorado, toma a imagem em seus braços. Ela é linda, assim como fora a escrava Ana. Correndo assustado pelo matagal, o garoto vai atrás do padre da comunidade.
Dona Dove para nesse ponto e olha para as folhas que se balançam do lado de fora da casa, embaladas pelo vento e diz: O Padre disse ao menino, que Ana virou Santa. Um silêncio percorre a sala e eu fico imaginando o que acabara de ser dito. Ao meu lado, o meu avô e a minha mãe, que eu levara para descortinar aquela história, tem os olhos fixos na Senhora, cujos olhos agora faíscam. Uma Santa toda de ouro, com uma coroa cravada de pedras preciosas. Mas o Padre levou a Santa para a Igreja da Penha, a Santa Ana, a nossa Santa Ana. E nunca mais a trouxeram de volta. E depois disso, colocaram um cruzeiro de madeira na sepultura. Ana, desde aquele dia, tem realizado muitos milagres. Vem gente de todos os lugares desse mundo, soltar foguetes, acender velas e agradecer a Santa Ana pelas graças alcançadas. Por isso que construíram aquela capela, moça, perto do túmulo da escrava. E quando eu não estiver mais aqui para contar a história, meus filhos já acreditam nela e estarão aqui para contá-la. Todos nessa casa já fizeram promessas para ela e foram atendidos. Vixe, nem conto às vezes! Nesse momento me lembro de mim mesma, ainda menina, andando pelo caminho que leva até o túmulo da Defunt’Ana. A minha avó Anália, a frente, levando velas e flores. Ouço o estampido dos foguetes. Não estamos sós. Junto conosco, vão o meu avô e algumas pessoas nos acompanhando. Lembro que foi por minha avó que conheci a história da escrava Ana. Olho para a velha Dove, meu avô e minha mãe, ali na mesma sala. E me sinto responsável por repassar adiante aos meus filhos, o que ouvi. Um assombro me toma. E sigo pensando que acabo de descobrir o milagre da Santa Ana: é a história, que não cessa de ser contada. A trajetória da oralidade, que agora sussurra em meus ouvidos.
(Tâmara Rossene)
P.S. Na foto, o cruzeiro da Santa Ana, na Barriguda...

terça-feira, 1 de dezembro de 2015



          Olhamos a cidade do alto de um prédio. Uma menina e uma mulher admirando a paisagem de concreto. Embaixo, inúmeros arranha-céus coalhando o espaço. Neles o dia transcorre, sem que se sintam observadas, as formiguinhas humanas. Um porteiro olha a sua frente, esperando a rotina começar. Um casal de bermudas e havaianas, talvez de férias, compartilham impressões. No térreo, o zelador grita, faz gracejos, cria performances para chamar a atenção. Parece ter sonhado outro espaço para si.
          Aponto cada uma dessas imagens e vou mostrando a minha pequena aprendiz: o restaurante e a arrumação das mesas, o posto de gasolina e a fila indiana de carros coloridos, as repartições públicas com o seu entra e sai. Em cada lugar, uma engrenagem se move. Digo para a menina de olhos arregalados que são organismos vivos, de diferentes tamanhos, que movem a cidade. E sob seu rosto tranquilo e inquisidor, repito: A cidade somos nós compondo essas máquinas. Ela me olha e pergunta o que fazemos então ali paradas, sem funcionar. E saímos imaginando, que peças seremos nós!

P.S. Encontrei essa cena escrita num bloco esquecido. Eu e Mariana, em nossas descobertas... A foto foi tirada em Belo Horizonte, em 2001, na mesma época em que vivenciamos esses fatos.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015


Lembro que os maços de cigarros traziam dentro deles um pedaço de papel metalizado, meio fosco. Isso era na década de 70 e não havia tantas papelarias, nem tantas cores e texturas de papéis como hoje. As asas dos anjinhos das procissões eram feitas em filó branco e depois enfeitadas com estrelinhas ou bolinhas metalizadas. Na falta das papelarias, o papel dos cigarros servia. Eu tinha loucura para ser anjo e loucura por aquele papel metálico. E quando me disseram que eu me transformaria em um anjinho de roupa vermelha, na procissão de São Sebastião, saí catando todos os maços de cigarro que encontrava pelo caminho. Uma impressão agora, de que se fumava muito naquela época. A procissão terminou e eu fiquei com o brilho das bolinhas prateadas até hoje, no olhar. E agora, olhando para a coluna de uma parede da sala, onde colei espelhos em formato de estrelas, que lembram muito as estrelinhas saltitando nas asas dos anjos em fila indiana, pelas ruas da cidade, compreendi porque estão ali. Um sorriso infantil ao fitá-las. A parede, as estrelas, o prateado, o par de asas e eu... flutuando por entre eles, como se estivesse no céu.

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Estamos todos consternados com a catástrofe em Mariana... Mas além dos posts compartilhados e da solidariedade prestada, fico pensando em quanto disso tudo modificou a nossa consciência em relação as questões ambientais. Aqui em nossa região, se eu não estiver enganada, Boquira, Brotas de Macaúbas e Oliveira dos Brejinhos tiveram seu potencial hídrico sacrificado pela exploração do minério. Todos os dias, silenciosamente, o esgoto escorre para o leito do Velho Chico, abocanhando as águas das cidades ribeirinhas. As nascentes são dizimadas debaixo dos nossos olhos, enquanto nos chocamos com as imagens da TV. E quanto disso trouxemos a tona, nas notícias que nossos dedos ágeis tem propagado? Debaixo da lama de todo esse sistema, quanto de nós tem renunciado ao consumo desenfreado? Quanto temos abdicado para fugir a lógica (ilógica) de sustentar a aparência? Quanto temos revisto na educação dos nossos filhos, para impedir que as novas gerações propaguem esse modelo estúpido que escolhemos? Quanto de nossas aspirações medíocres de morar em torres de concreto, dispostas sobre ecossistemas inteiros, morreram? Quanto de mim, efetivamente, se posiciona como responsável, quando aponto o meu dedo em riste, para os órgãos governamentais? Quanto de você está nisso?

terça-feira, 3 de novembro de 2015



E eu aqui a maldizer
o impiedoso Senhor do Tempo
ladrão dos meus melhores anos
o causador dos meus tormentos.
E indago porquês
sobre a ampulheta que se esvai
lâmina sobre os dias meus.
Mas eis que um pensamento
me trai:
esse Senhor das horas passadas
SOU EU!
    

(Tâmara Rossene)

domingo, 25 de outubro de 2015



Calaram Cida
no mato ao lado da Avenida
onde ela brincava de esconde-esconde.
Calaram Simone!
ali, próximo ao ponto de ônibus.
E ninguém ouviu
o grito que não saiu
da garganta de Maristela.
Calaram meninas pretas, brancas, pardas, amarelas...
Mas não sei porque
vozes e dedos em riste
ainda se levantam contra elas.
                           (Tâmara Rossene)


sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Nós já tivemos essa relação direta de sobrevivência com o rio... Quando ele era o principal meio de locomoção e o promotor das trocas comerciais. Mas depois vieram a rodovia e as novas formas de produção. E nos julgamos independentes do ciclo que se entrelaçava com o Velho Chico. Nossos sentidos e nossos caminhos estão noutros lugares. E tolamente acreditamos que o São Francisco é apenas a paisagem. Talvez por isso, só haja o rio que é pano de fundo das fotografias, o que que está sempre por detrás de nós, essa contemplação, sem qualquer ação...

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Final da década de 90 e lá estava eu, recém saída da Faculdade, perdida entre números, no escritório das Lojas Americanas de um shopping em Salvador. A empresa lançou uma campanha para ampliar o número de filiais até o ano 2000 e nós tínhamos que fazer uma fila dupla, na entrada da Loja, de um lado e do outro, recebendo os primeiros clientes do dia, enquanto o jingle da campanha era tocado em alto volume. Eu fazia aquilo quase que obrigada, pensando nos lançamentos contábeis que me ocupariam o dia inteiro. Mas sorria, como ditava as regras. Num desses dias, cinco clientes no máximo entrando e eu vejo um amigo da adolescência, dessas bandas do Velho Chico, se aproximar. Por um breve momento, achei que ele tinha me visto e desviava o olhar. Tentei novamente fitá-lo
e ele apressou o passo e entrou na Loja. A música acabou e eu voltei para o escritório, tentando localizá-lo entre os corredores de mercadorias. Só então a ficha parece ter caído. Eu, fardada, na entrada de uma Loja de departamentos, sem nenhum símbolo de sucesso para exibir. O que seria aquela imagem para o meu amigo? Talvez a de uma pobre moça, que acabara o ensino superior e precisava trabalhar para sobreviver, daquela forma subalterna. Ele acabara de assumir um cargo de confiança numa Prefeitura do interior, sem ter se aventurado como eu, nos caminhos do mundo e dos livros. Ele era o símbolo! Eu, invisível, presa as engrenagens de uma máquina, que eu não comandava. Enquanto ele já era o próprio comando.
Anos mais tarde, nos reencontramos. Mas nessa época, eu já tinha marcas de "sucesso" suficientes para exibir, para que ele voltasse o olhar em minha direção. Voltou a ser então, o meu amigo querido de outras épocas. Nem ele, nem eu, mencionamos aquele dia. Chego a pensar que ele acreditou que eu nem percebi o seu passo apressado e o seu olhar escorregadio daquele dia e que respirou aliviado por essa constatação... Às vezes quero livrá-lo da culpa e imagino que ele não tenha me visto. Talvez a circunstância tenha me invisibilizado. Ainda carrego essa dúvida, porque talvez essa seja a melhor resposta. Mas esse fato também me trouxe um olhar que está sempre espreitando a sombra dos invisíveis. Os que estão a margem da lógica perversa. Os que são silenciados todo o tempo, por olhares como aquele do meu amigo, que atravessou o meu semblante, como se eu fosse uma pobre alma, a vagar...

P.S. Na foto, ciranda de roda, na Ilha Grande...

domingo, 20 de setembro de 2015

92 anos de tio Elias, na verdade tio do meu avô. E eu ali ouvindo as filhas dele falando do pai zeloso que velava as noites em que os filhos ardiam em febre, às vezes debulhando o milho, para não adormecer. Debaixo das mangubeiras da Canabrava, mergulhada na noite, eu fui penetrando em minhas memórias. Tio Elias, homem pacífico e de poucas palavras, me lembra ao engenho de cana se movendo com os animais; a sua Quezinha, que me recebia sempre com beiju de massa, café e um sorriso. Paulo e Lena me oferecendo um copo de garapa de cana e jatobá. Os olhos e as longas tranças negras de Lena, se movendo em nossas brincadeiras. Os poucos metros que eu e minha tia Cristina percorríamos da casa de tia Helena até encontrar a porta da frente da casa de tio Elias. Zé, Eli, Vera e Silvia com sua voz limpa, de braços abertos prá mim. As filhas lembrando a convivência com o pai e eu revendo meus avós Anália e Minervino entrando na casa de Dona Edite, na sala de Dona Isaura, no engenho de Silas Braga, com os pés mergulhados no regato. Eu, me sentindo tão distante daquela realidade e de repente percebo que tudo aquilo são pedaços de mim.  O cheiro do sabão de manguba. As mulheres na lida da mandioca. O mel de rapadura escorrendo em meus dedos. Os meninos na porta da igrejinha, esperando a hora do catecismo, aos domingos. E quando estamos indo embora, meu avô entra no carro e começa a falar das suas próprias lembranças. De ter sido o primogênito de Samuel e das suas tias disputando as suas mãozinhas de garoto. Da estrada onde passavam os boiadeiros, com boiadas estrondosas, sob seu olhar de menino. Nossas memórias ativadas. De repente ouço uma voz ao longe e não identifico como parte daquele cenário. Meu filho em meu colo, me diz: - Gostei da Canabrava, mamãe! Fico pensando se parte disso tudo, chegará até ele. Ou se adormecerá junto comigo, no labirinto da memória...

terça-feira, 15 de setembro de 2015

A menina chora a miséria
em mares nunca navegados.
Enquanto a dor alheia se espraia
ali, bem ao seu lado...

sexta-feira, 4 de setembro de 2015




A menina que tanto já bradou ao vento
agora julga o grito do outro
mau intento.
 Menina, menina
que agora julga e condena
apenas a tua voz é legítima?
ou estás presa as engrenagens
do sistema?
(Tâmara Rossene)

No menino sírio
reconheço o rosto de meninos que todos os dias
eu vejo em minha sala fria
seguros na barra da saia
de mulheres de mãos vazias.

Eu reconheço a minha e a sua boca
que silenciam
num mundo repleto de hipocrisia
e de causas tão, tão vazias
quanto aquelas mãos.
Mundo cão!

 
(Tâmara Rossene)

domingo, 30 de agosto de 2015

Depois da aula da última sexta, fiquei divagando sobre as marcas da violência que carregamos. Não as marcas físicas, mas as que se inscrevem em nosso ser e respondem por determinados comportamentos que assumimos, muitas vezes de forma inconsciente. Uma palavra dita por alguém próximo, os discursos ditados pelas instituições das quais fazemos parte e a obrigatoriedade de reproduzi-los, os relacionamentos abusivos, os moldes da família, da escola, os julgamento indevidos, os padrões pré definidos. Eu consigo descrever algumas ocorridas em tempos remotos, de forma muito clara. E as vezes identifico reações desnecessárias no presente, a menos que eu faça conexões com marcas de outras épocas. Umas que trouxeram consequências danosas, outras mais superficiais. Outras ainda que já são cicatrizes, mas que em determinados momentos provocam dor... Identificar as marcas causadas no outro é um exercício muito mais complexo e talvez mais doloroso. Porque aí temos que nos admitir falhos, tolos, entregues a nossa pequenez e as vezes cruéis. Mas o cotidiano, a lei da sobrevivência, o bom senso (será?), muito a nossa volta se esforça para negar essas impressões. Talvez seja necessário tomar distância de si para enxergá-las. Mas... quanto de nós quer promover esse encontro?

quarta-feira, 12 de agosto de 2015



Eu sinto falta dos começos
do frescor dos enredos
de quando tudo 
é só descoberta
de quando toda palavra é ainda
incerta.
Eu sinto falta dos começos
sem mágoas
sem vícios
sem o corroer cotidiano.
Eu sinto falta
porque todo começo
é um oceano...
             
     (Tâmara Rossene)



sábado, 1 de agosto de 2015


Eu ouvia que de agosto
colhia-se apenas desgosto
e o grito dos loucos.
Mas esse vento que sopra
pode ser a boa nova...
Agosto
traga feliz o meu rosto
na porta da nossa casa na Avenida.
Junte de novo 
o que agora é partida.
Leve embora esse gosto
de despedida.
E nos faça flutuar
por entre as folhas que correm nas ruas.
Ó, agosto!
sopre prá longe
a realidade crua...

P.S. A foto, ainda que de baixa qualidade, é nossa (minha mãe, meu pai e Celo), na frente da casa na J.K., vendo o ciclismo passar, num agosto...


quarta-feira, 29 de julho de 2015



Com o tempo eu fui aprendendo a silenciar
a me calar nas mudanças 
a não relatar de minh'alma
as inconstâncias.
Com o tempo eu fui aprendendo a aparentar essa calma
para não demonstrar o barulho
das emoções.
Com o tempo eu parei de contar aos quatro cantos
os meus planos para o futuro
e a agonia das minhas sensações.
Assim me livrei dos maus agouros
e do falso propagar.
Dos burburinhos,
do fervilhar...
Com o tempo
foi esse calar dos movimentos
eu aprendi
a ouvir o silêncio...
                    
                                   (Tâmara Rossene)

P.S. Na foto, a serra da Barriguda...


quarta-feira, 1 de julho de 2015

Não sei se sou eu
ou a lua que muda
num dia estou contida
no outro
desnuda.
Não sei se sou eu
ou a forma como sopra o vento
num dia sou puro êxtase
no outro
tormento.
Não sei se sou eu
ou a tábua das marés
num dia sou...
quem sou?
No outro
Mulher.
Não sei se sou eu
As estações
os movimentos
ou se é o que primeiro me alcança
sou eu nessa eterna inconstância...
       (Tâmara Rossene)

P.S. Na foto, um momento de mudança, Belo Horizonte, 2001.

quarta-feira, 17 de junho de 2015



Entro no ônibus segurando a garotinha pela mão, bolsa de um lado, sacola do outro, me equilibrando e protegendo-a dos solavancos do veículo. Giro a catraca, com um cuidado extremo, para não apertá-la. Confiro o troco do cobrador e me atiro ao primeiro lugar vazio, sentando a menininha ao meu colo. Chamo-a de princesa, ajeito o vestido azul, com uma pala branca na gola e flores bordadas. Fico admirando-a e arrumando os cachos que havia feito há pouco em seu cabelo, driblando a sua impaciência. Percebo então que a mulher ao lado me olha sem parar. Imagino que seja a presença da criança sentada em meu colo. Falo então para ela: Diga oi para a moça. Ela pronuncia um oi tímido. Eu me encanto com o seu jeito. A tal moça não sorri. Na verdade, uma Senhora aparentando uns 40 anos. A garota que agora me abraça, tem dois anos. Olhos vivos, nariz afilado, boca carnuda e tez morena. A minha filha me olha nos olhos e diz: te amo, mamãe! Transbordo de alegria e digo que a amo também. A mulher agora não tira os olhos de nós duas. Mas não sorri. Avalia. Perscruta dos meus sapatos ao meu  cabelo e depois faz o mesmo com a garota. Fico incomodada, porque ela não sorri, não se dirige a mim, nem esboça qualquer reação que me faça compreendê-la. Por uns dez minutos, no trajeto que o ônibus percorre, dou gargalhadas, sacudindo a pequena agora agarrada ao meu peito. Mas aqueles olhos estão lá e eu já começo a medir os meus gestos, tentando vislumbrar alguma reação em seu rosto. Uma mulher branca, de cabelos lisos e negros, descendo até os ombros, usando um longo vestido verde e uma pequena bolsa que se desprende de um dos seus braços. Me parece uma pessoa normal, como as que encontro no meu trajeto, todos os dias. Desço os olhos  para a minha vestimenta, para saber se há algo de errado em meu corpo, mas não encontro nenhum traço de anormalidade. Faço  então um esforço para me lembrar se a conheço, mas me ocorre que a próxima parada é a minha. Quando me levanto então e seguro a pequena garotinha pelas mãos, ela me fita e pergunta: Ela se parece com o pai, não é? Por um instante, o mistério perde o seu encanto! Em milésimos de segundos, mato a charada, balbuciando em pensamento: a minha cor e a cor da garota, essa era a inquietação e o julgamento da minha algoz. Volto a mulher e pergunto, enquanto o motorista vai reduzindo a velocidade: O que? Ela refaz a pergunta: O pai é moreno, não é? Penso em responder sarcasticamente que é alemão. Me viro para ela e respondo: É negro. Ela se cala e o ônibus silencia. Eu desço os degraus com a mãozinha da minha filha apertada entre a minha. Vou caminhando devagar e sinto aquele olhar me acompanhar, por um bom tempo. Parece que vai depositando sobre meus ombros, todas as palavras que não teve coragem de pronunciar...

sábado, 13 de junho de 2015


12 de junho

Um dia apenas, não comporia nem uma linha de um poema...

Eu rasgaria essa data do calendário
e lançaria fora o gesto perdulário,
do presente que quer falar por si só...
Eu prefiro todo dia, o desatar dos nossos nós. 
A sua pressa e a minha melancolia.
O desenrolar das agonias.
O que cede um tanto de si,
prá colher no outro,
pequenas alegrias...
                      (Tâmara Rossene)

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Considero importante um dia, uma semana, um mês, uma data, para reverenciar o rio São Francisco. Até porque independente da água como bem necessário a nossa sobrevivência, há toda uma simbologia em torno do rio para nós, que nos originou enquanto comunidade ribeirinha que somos. O Velho Chico, durante anos foi nossa veia comercial, trafegando vidas e produtos, ampliando nossos domínios, nos constituindo enquanto cidades. Mas enquanto as causas não forem tratadas, as consequências serão apenas discursos vazios. Cinco estados cortados, 521 cidades banhadas, mas as reverências ao Santo Chico devem estar devidamente escritas nas agendas das políticas públicas desses lugares por onde passa... Precisamos sair desse cenário poético que certamente é a sua paisagem, para o cenário da legitimação do que pregamos a cada ano. Do saudosismo do que ele já foi, para a garantia de que ele ainda existirá no futuro.
Minha homenagem ao São Francisco, com uma poesia do meu saudoso pai, Orlando Ribeiro de Andrade...
RIO SÃO FRANCISCO
Rio que passa, manso e tranqüilo,
Como a vida transcorre
Na vila bem próxima.
É parte daqueles que cruzam suas águas
Todos os dias,
Em busca de outras barrancas
Procurando alimentos, cargas,
Lenha para transportar,
De férteis terras, para o plantio;
Rio arrojado
Que vem de outras plagas
Trazendo esperanças,
Trazendo tristezas.
Às vezes, a morte boiando
Sobre as águas barrentas,
Do tempo de cheias.
Rio imprevisível, que arrasta bonança
No húmus fertilizante
E no peixe que fervilha.
Sangue indomável
Do sofrido barranqueiro
Que espera calmamente
Em cada novo ano
Uma vida diferente, que nunca vem...
Rio andante, de esperanças sofridas
Alegria, tristeza, desejo, alimento,
Apego, poema, canto,
Sonho, ternura
Crença, sangue
HISTORIA....
Do barranqueiro
A própria
- VIDA!...

domingo, 31 de maio de 2015



Há poucos instantes 
ela era movimento
asas abertas
círculos em meu quintal
ao sabor dos ventos.
Até bem pouco
era um sopro de azul
em meu campo de visão
agora um corpo oco
na palma da minha mão.
Lá se foi um sopro, um vento, uma cor
e me pergunto qual o sentido
Da vida que se se esvai
como se nunca
tivesse sido...
          (Tâmara Rossene)

segunda-feira, 18 de maio de 2015



E estou aqui lendo um texto de Stuart Hall, sobre Identidade Cultural e Pós modernidade. Lendo, relendo, pesquisando, descobrindo conceitos, revendo significados, desconstruindo... De repente uma vontade imensa de chorar. Não é pelo significado da leitura que faço neste momento. Poderia ser outro autor. Poderiam ser outras palavras a me arrebatar. Mas é esta conexão com o mundo que as palavras me trazem. São estas construções que vou tecendo através da leitura. Vou chorando pelas possibilidades de redescobertas, pelas reafirmações ou pelas discordâncias que vou realizando. Suspirando pelos novos ângulos que de repente surgem...

P.S. Na foto, o céu do bairro São João, no meio da tarde.

quarta-feira, 13 de maio de 2015



Minhas ruínas
caindo por terra
onde ninguém mais me espera
onde meu corpo jaz oco.
Mas um sopro
devolve-me a história
por um fio
minh'alma resiste
minhas memórias...
                                    (Tâmara Rossene)

P.S. Em Igatu, Chapada Diamantina.

quarta-feira, 29 de abril de 2015



Lá fora
linguagens de outros mundos
um olhar sobre tudo.
Entre contextos
vou desconstruindo rumos.
Embora cá dentro
nas entrelinhas
resida sólida
minha identidade ribeirinha...
                            (Tâmara Rossene)


P.S catadores de marisco no Paraíso de Sandrinho...

domingo, 19 de abril de 2015


E estou sempre me perguntado de onde é "o lugar de fala" de cada um...


Em meio a tudo o que ouço
onde está o meu rosto?
Em meio ao que me cala
Onde está minha fala?
Não sei se reproduzo
Ou se o meu discurso
é mudo...
Em meio a tanto estratagema
será por mim
Que brota esse poema?
                         (Tâmara Rossene)

domingo, 12 de abril de 2015

Quem sabe algum dia
o que é imutável hoje em mim
tenha outro fim.
E quem sabe eu perdoe as feridas abertas
quem sabe não restem mais frestas
e eu sorria nos mesmo espaços.
Quem sabe os pedaços tenham se juntado
e os cacos colados sejam apenas
esquecida cicatriz.
Quem sabe...
Eu só espero que nesse dia
não seja demasiado tarde
e que ainda haja tempo
de ser feliz...
                     (Tâmara Rossene)


terça-feira, 31 de março de 2015



Há muito tempo não assisto a novelas e assisto muito pouco a televisão. Mas, sobre o boicote a última novela da rede globo, fico imaginando se propuséssemos um boicote a todas as emissoras que propagam a intolerância, o preconceito, o ódio e a violência. Que propagam a imagem de nós mulheres, como mero objetos sexuais. Que disseminam a imagem de que o cara esperto é o que sabe levar vantagem, independente dos métodos utilizados. Das novelas que modificam o cotidiano das favelas, criando falsos estereótipos. Das tramas que aproximam a mocinha pobre da gente rica, fazendo com que transite com naturalidade em seu cotidiano e que tenha sempre um final feliz. E fico imaginando o boicote ao esvaziamento de conteúdo na TV. E dos noticiários que exploram até a exaustão o sofrimento alheio, nos repetecos das cenas de crimes bárbaros. E sigo imaginando o boicote a notícia que se propaga dando apenas uma versão dos fatos, induzindo opiniões alheias, manipulando. Assim, até eu, que estou tão afastada da grande caixa mágica, me renderia... E proponho ainda, boicotar a música estridente e de baixa qualidade, que soa na maioria dos bares; o preço alto dos livros; a falta de educação e de gentileza de tantas pessoas a nossa volta. Vamos boicotar geral, a Babilônia que nós mesmos criamos! Basta abrir a porta de nossas casas e observar...

P.S. Na foto, nosso boicote a falta de tempo dos pais, com João e Celo empinando pipa.

quarta-feira, 11 de março de 2015



E depois de ler tantas mensagens pelo dia internacional da mulher, sem desconsiderar os motivos e a simbologia da data, eu me pego pensando na culpa que ainda recai sobre nossas cabeças. Porque apesar de nos permitirem esticar a jornada de trabalho para o mercado lá fora, ainda somos obrigadas a dobrá-la ou a triplicá-la. E quando o trabalho em casa se acumula e os pratos se empilham sobre a pia, a culpa é de quem? A culpa de todo dia, quando nossos filhos se machucam em casa, sem a nossa presença; quando sentem dificuldades na escola; quando vertem lágrimas com a nossa saída. E o engraçado é que o modelo idealizado do "provedor" do lar já caiu por terra há muito tempo, porque o sistema é cruel e as necessidades básicas de cada dia não se satisfazem, se também não formos a luta. E penso em tantas mulheres que arrastam os seus filhos com os olhinhos miúdos de sono, para estudar a noite, porque não ousam deixá-los em casa, com os seus companheiros. E em quantas de nós, apontando feito gatilhos os dedos em riste, para mostrar de quem é a culpa, quando aparece uma única falha. Nós, que conhecemos tão bem as nossas dores, mas que culpamos as outras, assim como a sociedade machista que nos formou...Nós, que ainda não aprendemos a sermos solidárias e a nos irmanarmos.
Por isso, decidi ilustrar esse momento com uma foto de minha mãe, na década de 80, concluindo o curso de Pedagogia na primeira turma da UNEB, em Salvador. Dividia o seu tempo entre as 40 horas no estado, os estudos e nós, seus filhos. Me provou numa época muito mais difícil do que a nossa, que nós mulheres, podemos falhar tanto quanto os homens, porque a mesma matéria nos constituiu. E nos criou assim, sem fugir a luta e aos dedos apontados. Sem se intimidar, seguindo os caminhos que ela mesma escolheu...

sexta-feira, 6 de março de 2015

O rapaz observa a moça em total encantamento. Filha de uma amiga de uma tia, que veio trazer uma encomenda. Tão jovem ainda, mas já graduou-se. Agora anseia em seguir outros caminhos. Sacode os cabelos graciosamente e volta-se para ele. Ele bebe cada palavra dita e sonha pedir-lhe em casamento. Ela sorri e ele quer ter dois filhos. Não, quatro! e todos parecidos com a mãe. Se pudesse, faria o pedido naquele exato momento. A mulher perfeita. Ele quer ouvi-la mais, apenas para confirmar o que já constatara. Em meio ao diálogo, com a sua mãe ao lado, ela lhe diz que espera que não "seje" nenhum incômodo. A palavra dita que não volta. Ele quase aos gritos, lhe pergunta: Que o que? E ela repete: Que não "seje" nenhum incômodo. Ele quer morrer. A noiva era perfeita e agora a palavra, golpeia-lhe a face e lança com intensidade, ao chão, os seus planos. Lá se foram os quatro filhos e as alianças trocadas. SEJE! SEJE! SEJE! A palavra cravando em seu peito. Ele balbucia: Ah, maldita palavra! Ela e a sua mãe olham curiosas para ele com cara de interrogação. E ele, percebendo, tenta desfazer o dito e apenas responde: E eu espero que você seja feliz!



sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015


Porto Seguro

Barquinho errante
em marés de sentimentos
eu era solta num espaço infindo.
Foi aí que as trilhas
sulcos em minha própria face
apontaram a hora de ancorar.
De aventureira e bandeirante
eu - mãe e amante.
Com tripulação em terras seguras
e calmaria constante.
Agora posso enfrentar guerras,
impiedosos e hipócritas.
Navegar em águas turbulentas,
cair em trincheiras profundas ao longo do dia.
Mas em meio às tormentas
lá está o porto que me espera!
É só atravessar a passagem
que tudo volta ao estado de paz. 
                                                 (Tâmara Rossene)

P.S. Clique de Mariana Bomfim, em http://misasmausoleum.tumblr.com/


sexta-feira, 16 de janeiro de 2015



Em alguns lugares
foram ficando pedaços de mim.
Eu fui me espalhando pelos caminhos
pelos trajetos.
E agora fica essa sensação 
de que há sempre algo faltando.
Eu me querendo inteira
espalhada por tantos recantos.
Jamais me reconstituirei!
Ao me dividir
me multipliquei...

(Tâmara Rossene)

domingo, 11 de janeiro de 2015


Hoje, como quase todos os dias, as lembranças de meu pai... Das poesias que me deixou, deixo aqui...


ALMA FRANCA
                                                
Minh'alma
Inocente e poética
Repousa ternamente,
Sob as ramificações
De sua natural sensibilidade
Estendida para o mundo
Buscando ardentemente
A paz.
Distribuindo sementes
De virtudes tão esquecidas
Sonhando o vermelho
Das rosas de abril...
Espalhado preces
De amores perfeitos
Que as brisas matinais
Orvalham de cristal...
                                  
                     (Orlando Ribeiro de Andrade)