domingo, 21 de fevereiro de 2021


 

Nas últimas vezes em que visitei o meu avô, passados alguns minutos, ele sorria e repetia a frase: “vovô, eu tô com três toisas. Tansada, tum sede e tum fome”. Era a clássica frase de uma das histórias da minha infância.

Sexta feira do final da década de 70. Ás cinco e pouco da manhã, vovô Minervino me levou junto com ele em um táxi, da Vasco da Gama a Igreja do Bonfim, para assistirmos a primeira missa do dia. Após a celebração, entre um bocejo e outro, que eu tentava esconder, ele parou nas proximidades da colina sagrada, para comprar um buquê de flores, para a segunda parada do nosso trajeto: Monte serrat, na casa da primeira professora dele, Dona Corina. No caminho, eu ia ouvindo a sua narrativa, de quando aquela moça chegou até a Canabrava, zona rural de Ibotirama, para dar aulas para meninos como ele, que precisavam ser lapidados. Ali ensinou leitura, escrita, oratória e até normas de etiqueta. Eu ia imaginado cada cena, intercalando o olhar entre ele e as flores, apertadas mais fortes nas mãos do meu avô, a cada lembrança relatada. Da casa da heróica Corina, da qual infelizmente não me recordo do rosto, nem da voz, partimos para o Comércio. Paramos no escritório de um dos amigos dele (me parece que o ilustre Dr. Marcelo Duarte) e ali eu passei não sei quanto tempo, observando como o menino da Canabrava, ao falar, se colocava em pé de igualdade, com uma figura que ele me disse ser de tamanha importância. Saímos dali e subimos o elevador Lacerda. Descemos a rua Chile, subimos a Avenida Sete. Chegamos até o quartel da Mouraria, onde fizemos mais uma parada. Depois fomos até uma loja de tecidos, onde o meu avô passou algum tempo escolhendo cortes de panos para vovó Anália. Um deles (um tecido azul claro), foi presente para mim.

Nesse ponto, estávamos subindo a rua do Paraíso. Eu, menina frágil, pouco acostumada a acordar tão cedo e a caminhar tanto num só dia, resistira bravamente até ali, mas já estava querendo entregar os pontos. Mas tive medo que minha fama de menina dengosa e cheia de calundus, estragasse tudo e que o meu avô me julgasse mal e não quisesse mais a minha companhia, em dias como aqueles. Da altura dos meus seis anos, engolindo as letras, porque parecia ter a língua presa naquela época, eu usei toda a estratégia que me pareceu mais convincente, para falar calmamente: - Vovô, eu tô com três toisas. Tansada, tum sede e tum fome. E esperei, morrendo de medo. Vovô Minervino deu uma gargalhada alta, atraindo a atenção de quem passava. E mostrou que o restaurante já estava quase a nossa frente. E essa história foi repetida centenas de vezes por ele ao longo de nossa existência.

Hoje eu fui visitar vovô, que nos seus noventa e um anos, às vezes está lúcido, ás vezes mistura realidade e fantasia. Quando falei com ele, tive em resposta, um cumprimento distanciado. Tive medo de não ser reconhecida, depois de uns 20 dias sem vê-lo. Depois de 30 segundos, ele começou a sorrir e disse: “vovô, eu tô com três toisas”. Sorrimos juntos. E fui percebendo que enquanto ele vai aos poucos se despedindo, eu sou parte do único fio que permanece e talvez importe: a memória...

 

P.S. Essa fotografia foi tirada na Barriguda, há alguns poucos anos. Fiquei de longe, observando ele sentado nesse troco, talvez atento as memórias que lhe visitaram, nesse dia...