domingo, 23 de novembro de 2014

Hoje estou sofrendo de saudade… de tentar aprender a letra de uma música e passar horas tentando compreender a cabeça do autor, em uma palavrinha que me intrigou. De reler Cem Anos de Solidão, sem pressa para virar a próxima página. De ficar horas a fio olhando nos olhos do meu amor, repetindo histórias que vivemos e que ficaram esquecidas pelos cantos. De tomar um café com a minha mãe, deixando a tarde andar, sem pressa. De narrar histórias para os pequeninos da família, imitando a voz dos personagens e fantasiando junto com eles. Hoje, eu quero as pessoas que eu já não vejo, as falas que eu já não ouço. Hoje, eu quero também o ócio… Hoje, estou sofrendo de saudades de mim mesma…
                                        (Tâmara Rossene)

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Compartilhando por aqui, meu texto premiado com o segundo lugar, na categoria Prosa, do I Concurso Literário do Servidor Público do estado da Bahia.

                                      Vestido de Noiva

Era uma tarde de quarta-feira, mês de maio. Final das águas de março, que retardavam sua ida nos chuviscos repentinos. No corre-corre dos camelôs para salvar as mercadorias e dos passos miúdos de colegiais com livros encostados ao peito, como para proteger as lições dos pingos que iam se encorpando, lá estava ela!  Indiferente aos gritos, tropeços e aos imprevistos provocados pela chuva. Pedra no caminho dos que tentavam a muita custa não se molhar.
Detinha-se Maria em frente as vitrines. E assim ficava horas. Do outro lado, ostentava-se o objeto de admiração, para o qual convergiam todos os seus sentidos, a esquecer do mundo a sua volta, e a provocar mudanças de rota, para as pessoas que, no corre-corre do comércio, se deparavam com aquela estátua humana em seu caminho, imóvel, a fitar vitrines. Lá estava ele! O vestido de noiva! E Maria ficava a degustar aquela visão perturbadora, quebrada apenas pelos berros da filha : Vamos, mamãe!
As filhas... Sonhava Maria com o momento, em que o vestido não flutuaria mais sozinho, como em tantos outros sonhos, mas em que ele se colaria ao corpo de suas filhas, para serem arrancados apenas pelos noivos, na noite de núpcias. E suas filhas, pensava, eram suas esperanças. E Maria lembrava, do seu próprio casamento, escondido dos pais, em uma outra cidade, naquela capela encravada na gruta; ponto turístico e local de encontro de romeiros. Mas, de desencontros dos desejos mais íntimos de Maria. Dele e de muitas mulheres: o véu, a música, os passos miúdos, os cochichos entre os convidados, os olhares para a noiva. No seu casamento, apenas ela, o namorado (ou noivo?), as testemunhas e os gestos e palavras mecanizadas do padre. Pelo menos era assim que ficara eternizado aquele momento, em sua memória. Apesar do marido, efusivo, lembrar que o sol estava se pondo e que os raios dourados adornavam seu cabelo. Que o céu e o dia estavam muito azuis, que as andorinhas se multiplicaram e que mensagens de boas novas pareciam surgir dos quatro cantos. Na estrada de chão, na gruta da Lapa, no canto e na prece dos romeiros, nas crianças que cruzavam o seu caminho...
E assim cresceram suas duas filhas, sem saber que eram acalentadas por aquele secreto desejo, apesar de sentirem que alguma coisa estranha acontecia com a  mãe, quando se deparavam com aquelas vitrines, tão ornamentadas nos meses de maio. E foi em maio que nasceu Maria. Nem no começo, nem no fim, mas exatamente no meio do mês das noivas. Como uma premonição, uma promessa, uma escolhida. Se chamava Maria, nascera em maio e se casara em uma gruta. E por que então o destino lhe negara, um direito que a natureza lhe concedera?
Uma das filhas de Maria, preferiu um desses casamentos modernos, em que se acreditava mais na força da palavra, do que nos papéis do cartório e no “Marido e Mulher” do padre. Agora só restava a outra filha. Ou não restava, porque esta, já grávida e enjoada de tanta badalação, preferiu se acotovelar nos corredores do fórum, e se casar apenas no civil. Ou talvez nem tivesse preferido, mas optado pelo caminho mais prático e econômico, de regularizar a situação, antes da visita da cegonha.
E andava Maria pelos cantos, triste, abatida e sem que ninguém percebesse... desiludida! Duas oportunidades perdidas, onde foi que errara? E só encontrava consolo nas vitrines, tão suas conhecidas. Mudou de religião e de atitudes, procurando um consolo prá’s suas mágoas. E vista assim, de joelhos no chão e oração fervorosa, parecia uma devota de Santo Antonio, pedindo casamento.
      A primeira filha se separou e no meio da confusão, Maria enterrou o sonho acalentado. E a filha arrumou namorado, vistoso, falante e com ataques de reparador aos erros passados da namorada. Ganhou o apoio da sogra, que procurou encaixá-lo nos moldes do genro que sonhara, e que não tivera até então, pois nunca aprovara a escolha das filhas. E ele, ao que parece, se encheu de entusiasmo com toda aquela adoração e anunciou o casamento.
E adiantou-se Maria, a consultar moldes e costureiras, e a encomendar flores e salgados, como se a festa, fosse homenagear ela própria. Alguns duvidavam: - Aquela é a Maria? Não, era outra! O seu rosto adquirira uma tonalidade brilhante! Orava com mais fervor, comandava a casa e sorria sem parar! Apenas um pouco nervosa, como riem as noivas de maio, temerosas com a proximidade do grande dia. Mas não perdeu um único detalhe da festa, nem do vestido, que acompanhou molde a molde na costureira, sentindo no próprio corpo os alfinetes dos ajustes, que espetavam o corpo da filha.
E chegou o dia! Maria no primeiro banco da Igreja de Nossa Senhora da Guia, com os óculos que nunca usava em público, excetuando-se aquele dia, em que precisava ver bem o que conseguira a custa de tanta espera. E quando finalmente entrou a noiva, era como se Maria tivesse se transportado para o corpo trêmulo de sua filha e eram as suas mãos que se entregavam nas mãos do noivo. E era ela quem ansiava por uma vida nova, apesar de já ter perdido uma boa parte das expectativas em seu casamento. E junto com o “Sim” da sua filha, Maria balbuciou a mesma palavra, em estado de êxtase. Olhava firme para cada convidado, deleitava-se com a música, embriagava-se com cada expressão, cada gesto, sentido o ramalhete de flores em suas mãos, apesar dele estar seguro nas mãos da noiva. E como em um milagre Maria se transportou de véu e grinalda prá gruta da Lapa. E viu os raios de sol e os sinais de que lhe falara o marido todos esses anos. De novo, era a noiva daquela tarde e de muitas tardes, olhando os vestidos. Mas naquele momento encontrara o seu.
Quando a cerimônia terminou, Maria suspirou profundamente e não chorou como costumam fazer as mães, nessas ocasiões. E seus olhos vertiam lágrimas por tão pouco! Mas deu um sorriso inigualável para o marido ao lado, o maior e talvez mais bonito, de todo aquele tempo em que estiveram juntos. O marido, por um momento, acreditou estar vendo a mesma noiva que tomara em suas mãos, em uma certa tarde, em uma gruta distante. Seu rosto se iluminou por um instante, mas ainda assim, não compreendeu. Êta Maria cheia de mistérios! Pensou. E não deixou de tomá-la nas mãos como o fazem os noivos.

Nem todo mundo notou a aura de encantamento que rondava Maria naquele dia, mas misteriosamente, foram percebendo, que desde então, nunca mais voltou a olhar vitrines.    

Tâmara Rossene