domingo, 21 de junho de 2020

Eu passei uma boa parte do ensino fundamental e o primeiro ano do ensino médio, nos corredores do Colégio Santa Dorotéia, no Garcia, em Salvador. Vez por outra, me sobrevém as imagens da igreja, da gente brincando de garrafão na brita do estacionamento, das histórias misteriosas da gruta, do piano tocado por Irmã Nunes, das músicas no mês de maio. Um lugar que me presenteou com amizades que eu tenho carregado pela vida afora. Às vezes, me vem imagens da casa da minha avó, na Praça Ives de Oliveira, aqui em Ibotirama, das andorinhas de louça nas paredes do corredor, dos pés de goiaba, das gangorras, do escritório do meu avô. Eu também fico olhando a distância, a casa dos meus pais, na Federação, em Salvador, a escada do fundo, de onde a gente subia e dava no telhado, a vista para a Vasco da Gama e para o Engenho Velho, de onde avistávamos o meu pai, subindo a ladeira para ir a Faculdade de Direito, na Católica. E eu vejo cenas da nossa casa em São Cristóvão, da árvore carregada de flores cor de rosa, que plantamos na entrada da casa, do baú vermelho cheio de brinquedos, da vista prá estrada do Cia. São lugares sagrados que não existem mais da mesma forma no plano material, mas que os acesso em espaços recônditos que construí aqui dentro. São espaços privilegiados onde me vejo sendo eu mesma, em construção e reconstrução. São os lares que habitei de forma permanente ou temporária e que no agora, residem num altar da memória, santificados pela paz de espírito que eu sinto ao lembrá-los...


P.S. Uma das poucas fotos da época do Dorotéia, num dia em que fomos fazer um trabalho na fábrica de chocolates Chadler, na Cidade Baixa, em 87.

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Sobre auto-cuidado ... Eu me lembro das minhas avós fazendo os seus banhos de assento, com folhas, sal, gotas de limão. Tomando garrafadas preparadas com ervas e cachaça. Tudo indicado aos cochichos, nos cantos da casa. A minha avó fervendo folhas de laranjeira para embeber o meu cabelo naquela água amarela, quando me deitava em seu colo e me colocava de ponta cabeça na bacia. O cheiro de laranja caindo em formato de água morna, acalmando até a minha alma. Do mastruz pisado no leite, da ingestão de cascas de abóbora ressecadas no sol, da banha de galinha derretida no café, dos males curados em receitinhas caseiras viajando no colo da oralidade. Lembro das minhas tias em volta do bule de café com bolo, cochichando segredos com as amigas, umas consolando as outras, em seus relatos de decepções e glórias amorosas, ainda tão jovens! A minha mãe tarde da noite, depois de ter dado aula o dia inteiro e ido prá faculdade, limpando a pele do rosto com leite de rosas. Da minha filha junto com as outras meninas sussurrando as suas dores nas tardes trancafiadas no quarto, como se o mundo fosse acabar.... Eu passei anos numa guerra declarada para honrar as contas, os compromissos, as metas, etc. etc., guerreando  (embora não percebesse) contra mim mesma, minando meu auto-cuidado. De uns anos para cá, voltei a ver o meu reflexo no espelho. Comecei pedalando timidamente em uma bicicleta de cestinha, segui para o pilates, depois para um ciclo de atividades físicas mais intensa. Depois eu voltei a olhar para o meu cabelo, para a pele, o espírito, a mente, minhas vertentes esquecidas pelo tempo e pela pressa. Eu me senti tão encorajada que até tatuei o meu corpo!
Estava lembrando que algumas fotos que postei em redes sociais registrando as minhas investidas no campo das atividades físicas, parece ter incomodado uma moça conhecida, que não se conteve em seus comentários, com pessoas próximas. E eram apenas postagens sobre o meu próprio corpo: imperfeito, aquém dos padrões estéticos, fora da curva da idade em que se "deve" expor os corpos; mas se modificando a partir da nova ótica que me impus do auto cuidado. Eu, mulher, pós 40, expondo meus avanços nas escolhas que fiz sobre a minha própria saúde e aparência, querendo apontar caminhos para outras, que assim como eu, margeiam por caminhos repletos de inseguranças e julgamentos.
Isso me trouxe outras tantas reflexões. Percebo que para além das futilidades cotidianas, muitas mulheres postam fotografias e selfies, numa tentativa desesperada de recuperar esse lugar em que se olham novamente e se aceitam. Por isso há um tempo eu parei com a crueldade dos julgamentos. Me veio em mente os auto retratos de Frida. E embora a gente não enxergue, a dor está por detrás de muitas dessas fotografias despretensiosamente postadas. E me veio a tona, as tantas mulheres que sequer puderam optar em abrir mão desse cuidado sobre si. O cotidiano corrido, o trabalho exaustivo, a vontade de chegar em casa e apenas ter a sensação de tirar os sapatos (eu já estive nesse lugar). Por isso quando ouço comentários assim, penso que ainda falta muito para que algumas mulheres rompam as algemas do sistema machista em que estão mergulhadas. Para aplaudir o amor próprio que chega as outras. Para compartilhar os seus próprios medos, compreender as dores alheias e dividir o espelho...

P.S. A foto, foi do período em que eu voltei a  exercer o auto cuidado.