Ainda me lembro do endereço: Av.
Crispim, 225, Federação. Passamos uns seis, sete anos, naquela casa, em
Salvador. A rua tinha nome de Avenida, mas era uma via muito estreita, de
barro, porque o asfalto só ia até a ladeira e a rua começava bem no pé da ladeira
e a gente já imaginava quando chovia e tinha que sair atolando até o calcanhar. Acho que
casa do tamanho da nossa, com três quartos e uma varandinha na frente, só tinha
a de Jaudira e Agenor, do lado direito da nossa. Com a diferença de que a casa
deles só vivia cheia, com os cunhados, os meninos, as vozes muito altas,
principalmente quando caia a noite. Do outro lado, morava Dona Didi, com cinco
filhos, dos quais só me lembro o nome de Lígia, Eliane e Evandro. Dona Didi era
lavadeira e as meninas ajudavam a lavar e a engomar as roupas. As meninas estudavam à noite e também davam aulas de banca, vendiam geladinho e faziam faxina. Por diversas
vezes, a minha mãe na Faculdade a noite, o meu pai dando aulas e eu me
aventurando no Parque São Brás ao lado delas, subindo e descendo ladeira, em
trechos às vezes escuros, quando iam entregar as trouxas de roupas para as
freguesas. Lígia devia ter uns dezesseis anos, tinha os cabelos curtos e
parecia mais velha, porque era alta e tinha uns quadris largos. Eliane, devia
ter uns quatorze e também era alta, muito magra e me dava medo com aqueles olhos
fixos, quando nos escondíamos nas ribanceiras, brincando de salve latinha. Às
vezes me assustava dizendo que se eu me escondesse perto do terreiro que ficava
próximo, iriam me pegar prá oferenda. E depois ficava gargalhando, observando a
minha reação. As duas eram negras e acompanhei Eliane por diversas vezes, como
ela dizia, para "passar ferro no cabelo". Eu ficava admirada com a
coragem dela, porque eu tinha certeza que o cabelo queimava naquele ir e vir do
ferro, por causa do cheiro de queimado. E perguntava se ela não sentia o ferro
encostando na cabeça. Mas Eliane só sorria para o espelho que segurava nas mãos, admirando o efeito no cabelo. Nessa época
eu tinha lá pelos oito anos.
Num domingo elas pediram a minha mãe
para me levarem a um passeio no centro da cidade. E lá fomos nós pegar o ônibus
no final de linha da Federação, ali perto da rádio Transamérica, conversando e
rindo alto, em direção ao Campo Grande. Me mostravam as pessoas da janela,
falavam com conhecidos e iam me explicando o que julgavam importante pelo
caminho. Descemos na frente do Teatro Castro Alves e paramos no pipoqueiro para comer aquela pipoca que eu só vejo em Salvador, com a camada generosa de
manteiga derretida e o coco ralado grudando no brilho da manteiga. Eu me sentia
livre e feliz andando no meio das duas, perto da estátua do Caboclo. Num minuto
uma ajeitava o meu vestido, no outro a outra tirava o meu cabelo do rosto. E
sorriam com aqueles dentes muito brancos. Eliane sempre com aquele ar meio
sarcástico. Resolveram seguir para a praça da Sé. E quando estávamos caminhando
ali perto do quartel, elas se entreolharam e cochicharam alguma coisa que eu
não entendi. E prosseguiram entre cochichos e expressão séria. Até o olhar
irônico de Eliane sumiu. Eu não entendia, mas tive medo de indagar. Elas
pararam de repente e me perguntaram: Se a gente encontrar alguma colega sua,
com a família e elas perguntarem quem somos nós, o que você vai responder? Eu
fiquei pensando e não tinha resposta. Mas no fundo eu sabia do que elas
falavam. Sabia que não podia dizer que eram da família, porque a resposta não
seria aceita. E tive medo de responder. E senti uma tristeza enorme. Porque
ninguém havia me falado sobre preconceito ou racismo, mas no fundo eu sabia que
não éramos iguais, nem as pessoas nos considerariam assim. E devem ter se
passado dois minutos apenas e pareciam horas. E elas insistiam. Eu tive medo de
falar a verdade e perder a companhia das meninas que me faziam parecer livre. E
meus olhos se encheram de lágrimas. E eu respondi: Que uma é minha tia e a
outra colega, ou que são minhas amigas? E elas disseram quase a um só tempo: não, você
não pode dizer isso! E Lígia encontrou a resposta que lhe pareceu mais
convincente: Diga que eu sou a lavadeira e Eliane a sua babá. Ou que eu sou a
babá e ela minha irmã. Eu balancei a cabeça afirmativamente, entre choro e
desespero, misturado a um sentimento que eu não sei bem descrever. E elas
reafirmaram a resposta que deveria ser dada. Nós três ficamos aliviadas com
aquela solução. E recobramos novamente o sorriso e seguimos felizes.
Hoje, lembrando dessa história, eu fico pensando em como aquelas meninas estavam acostumadas aquele lugar em que se colocaram, para não sentirem ainda mais as garras do preconceito. Preferiram se lançar no quarto dos fundos, das criadas, dos subalternos, para não serem julgadas por passearem na cidade com uma menina branca, vizinha da mesma rua, porém situadas em espaços distintos. Depois disso descemos a Castro Alves, subimos a rua Chile, descemos o elevador Lacerda, andamos pelo terreiro de Jesus, pelo Pelourinho, numa aventura que jamais esqueci, porque parece que ninguém nunca mais me mostrou aqueles lugares daquela forma. E elas agitadas, mostrando aos meus olhos de menina deslumbrada, a cidade sob um outro ângulo. Agora confortáveis por terem (elas mesmas) lançado sobre si a capa da invisibilidade, para que eu pudesse ocupar o lugar que julgavam que deveria ser destinado apenas a mim... Apenas a mim...