sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Ainda me lembro do endereço: Av. Crispim, 225, Federação. Passamos uns seis, sete anos, naquela casa, em Salvador. A rua tinha nome de Avenida, mas era uma via muito estreita, de barro, porque o asfalto só ia até a ladeira e a rua começava bem no pé da ladeira e a gente já imaginava quando chovia e tinha que sair atolando até o calcanhar. Acho que casa do tamanho da nossa, com três quartos e uma varandinha na frente, só tinha a de Jaudira e Agenor, do lado direito da nossa. Com a diferença de que a casa deles só vivia cheia, com os cunhados, os meninos, as vozes muito altas, principalmente quando caia a noite. Do outro lado, morava Dona Didi, com cinco filhos, dos quais só me lembro o nome de Lígia, Eliane e Evandro. Dona Didi era lavadeira e as meninas ajudavam a lavar e a engomar as roupas. As meninas estudavam à noite e também davam aulas de banca, vendiam geladinho e faziam faxina. Por diversas vezes, a minha mãe na Faculdade a noite, o meu pai dando aulas e eu me aventurando no Parque São Brás ao lado delas, subindo e descendo ladeira, em trechos às vezes escuros, quando iam entregar as trouxas de roupas para as freguesas. Lígia devia ter uns dezesseis anos, tinha os cabelos curtos e parecia mais velha, porque era alta e tinha uns quadris largos. Eliane, devia ter uns quatorze e também era alta, muito magra e me dava medo com aqueles olhos fixos, quando nos escondíamos nas ribanceiras, brincando de salve latinha. Às vezes me assustava dizendo que se eu me escondesse perto do terreiro que ficava próximo, iriam me pegar prá oferenda. E depois ficava gargalhando, observando a minha reação. As duas eram negras e acompanhei Eliane por diversas vezes, como ela dizia, para "passar ferro no cabelo". Eu ficava admirada com a coragem dela, porque eu tinha certeza que o cabelo queimava naquele ir e vir do ferro, por causa do cheiro de queimado. E perguntava se ela não sentia o ferro encostando na cabeça. Mas Eliane só sorria para o espelho que segurava nas mãos, admirando o efeito no cabelo. Nessa época eu tinha lá pelos oito anos. 

Num domingo elas pediram a minha mãe para me levarem a um passeio no centro da cidade. E lá fomos nós pegar o ônibus no final de linha da Federação, ali perto da rádio Transamérica, conversando e rindo alto, em direção ao Campo Grande. Me mostravam as pessoas da janela, falavam com conhecidos e iam me explicando o que julgavam importante pelo caminho. Descemos na frente do Teatro Castro Alves e paramos no pipoqueiro para comer aquela pipoca que eu só vejo em Salvador, com a camada generosa de manteiga derretida e o coco ralado grudando no brilho da manteiga. Eu me sentia livre e feliz andando no meio das duas, perto da estátua do Caboclo. Num minuto uma ajeitava o meu vestido, no outro a outra tirava o meu cabelo do rosto. E sorriam com aqueles dentes muito brancos. Eliane sempre com aquele ar meio sarcástico. Resolveram seguir para a praça da Sé. E quando estávamos caminhando ali perto do quartel, elas se entreolharam e cochicharam alguma coisa que eu não entendi. E prosseguiram entre cochichos e expressão séria. Até o olhar irônico de Eliane sumiu. Eu não entendia, mas tive medo de indagar. Elas pararam de repente e me perguntaram: Se a gente encontrar alguma colega sua, com a família e elas perguntarem quem somos nós, o que você vai responder? Eu fiquei pensando e não tinha resposta. Mas no fundo eu sabia do que elas falavam. Sabia que não podia dizer que eram da família, porque a resposta não seria aceita. E tive medo de responder. E senti uma tristeza enorme. Porque ninguém havia me falado sobre preconceito ou racismo, mas no fundo eu sabia que não éramos iguais, nem as pessoas nos considerariam assim. E devem ter se passado dois minutos apenas e pareciam horas. E elas insistiam. Eu tive medo de falar a verdade e perder a companhia das meninas que me faziam parecer livre. E meus olhos se encheram de lágrimas. E eu respondi: Que uma é minha tia e a outra colega, ou que são minhas amigas? E elas disseram quase a um só tempo: não, você não pode dizer isso! E Lígia encontrou a resposta que lhe pareceu mais convincente: Diga que eu sou a lavadeira e Eliane a sua babá. Ou que eu sou a babá e ela minha irmã. Eu balancei a cabeça afirmativamente, entre choro e desespero, misturado a um sentimento que eu não sei bem descrever. E elas reafirmaram a resposta que deveria ser dada. Nós três ficamos aliviadas com aquela solução. E recobramos novamente o sorriso e seguimos felizes. 

Hoje, lembrando dessa história, eu fico pensando em como aquelas meninas estavam acostumadas aquele lugar em que se colocaram, para não sentirem ainda mais as garras do preconceito. Preferiram se lançar no quarto dos fundos, das criadas, dos subalternos, para não serem julgadas por passearem na cidade com uma menina branca, vizinha da mesma rua, porém situadas em espaços distintos. Depois disso descemos a Castro Alves, subimos a rua Chile, descemos o elevador Lacerda, andamos pelo terreiro de Jesus, pelo Pelourinho, numa aventura que jamais esqueci, porque parece que ninguém nunca mais me mostrou aqueles lugares daquela forma. E elas agitadas, mostrando aos meus olhos de menina deslumbrada, a cidade sob um outro ângulo. Agora confortáveis por terem (elas mesmas) lançado sobre si a capa da invisibilidade, para que eu pudesse ocupar o lugar que julgavam que deveria ser destinado apenas a mim... Apenas a mim... 

 


domingo, 20 de setembro de 2020

 



Antes que o dia termine...

eu quero chorar por todas as mulheres
que misturaram as suas lágrimas
ao sabão escorrendo no tanque
quando as tantas da madrugada
se sentiram sozinhas
e pensaram que não tinham mais perspectivas.

Eu quero chorar por todas aquelas
que silenciaram seus gemidos
quando as horas avançavam
porque não eram de prazer
e adormeceram em travesseiros molhados.

Antes que o dia chegue ao fim
eu quero chorar por todas aquelas mulheres
que continuaram submissas e violentadas
porque se sentiram impotentes.
E por todas que no auge da fragilidade
sentiram a dor das pedras que lhes foram atiradas.

Eu não quero que o dia finde
sem que eu pranteie por cada uma
que desistiu dos seus sonhos
que afogou seus desejos
que acorrentou os seus passos
a dores que só mulheres sabem e sentem.

Antes que esse dia se encerre
eu quero o choro primeiro
da menina rejeitada apenas por se fazer mulher
e quero o choro derradeiro
da mulher que se levantou
e seguiu sem olhar para trás.

Eu quero chorar pelas mulheres da família
pelas estranhas
e pelas conhecidas.
Por aquelas que não estão mais vivas
e pelas que seguem mortas, em vida.

Antes que caia a noite e o dia se despeça
eu quero chorar por todas nós
porque assim existimos
em dias que começam, terminam
recomeçam
em dores que de igual forma se iniciam
e se perpetuam
na sina crua de ser.

E depois do pranto,
ainda que ele se encerre na madrugada
eu seguirei mulher
tendo no meu peito
as muitas dores
lavadas.

(Tâmara Rossene)

domingo, 13 de setembro de 2020


Eu me lembro como você gostava de ser "milico" (embora não gostasse de ser chamado assim). Talvez porque naquele tempo, você não tivesse se dado conta de que os meninos pretos eram os que mais sentiam as balas dos fuzis dos milicos. Os meninos pretos e de riso largo como era o seu. E me lembro como você se sentia imponente sob a farda caprichosamente engomada. Como se ela o levasse para mais além. Como se houvesse um universo paralelo, onde você se sentisse com mais poderes. E me recordo em como eu media meticulosamente as palavras,  porque duvidava daquele lugar e não acreditava naquela lógica, mas não queria silenciar os assobios dos hinos, que você lançava no ar ao amanhecer, porque o seu rosto tinha expressão feliz. Até que você precisou ir mais além, na luta  pela sobrevivência.  E precisou guardar a farda e o traje de gala (impecavelmente engomados) na lembrança e em nosso guarda-roupa. E  foi então que descobriu que a farda não lhe salvaria. Nem do mundo real. Nem mesmo de si. Mas muitos meninos tem os mesmos olhos e o mesmo sorriso que eu conheci em você. E muitos deles também ignoram para onde os fuzis apontam. E ainda sonham que esse universo os salvará...


quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Acordo. Café e correria. Relógio de ponto. Registra papel. Arquiva. Carimba. Pastas no andar de cima. Degraus. A moça senta a minha frente. Ela é um número de protocolo. Eu vomito normas. E prazos. O olho da moça mina. Eu olho o relógio. Registro o ponto. Almoço. Engulo. Corro. Relógio de ponto. Pastas. Enumero papéis. Protocolos. Paro. Por que a moça chorou na minha frente? eu paro de novo e não consigo olhar o relógio. O olho da moça vertendo lágrimas. Descubro que não sou uma máquina. E a moça não era um protocolo. E as normas não consideram as lágrimas. Não durmo. Acordo atrasada. A cadeira vazia a minha frente. Paro e seguro os papéis. Esqueço o relógio. Eu não sou um ponto fixo. E as normas não me prendem mais as engrenagens...

domingo, 30 de agosto de 2020

Avaliando as referências dos meus filhos e ouvindo Mariana falando dos avós, percebi ser uma pretensão enorme pensar, que os valores que tem estão centrados apenas em mim, em Marcelo, em nós, como pais. Os meus pais, professores de 40 horas do estado, morando em Barreiras, a mais de 800 km de Salvador, migraram na década de 70, com os três filhos pequenos, porque o meu pai havia passado no vestibular de Direito, da Universidade Católica do Salvador. Um lugar onde o acesso era apenas para privilegiados, para "os filhos de papai"; os que tiveram a trajetória traçada desde que principiaram na leitura do alfabeto. Uma realidade a quilômetros distanciada do cotidiano do meu pai, que não fumava, mas que levava madrugadas com um cigarro entre os dedos e uma garrafa de café, para se manter acordado e conseguir estudar.

Fomos morar inicialmente no Vale da Muriçoca e ouvi de um playboizinho daqui de Ibotirama, filho de um dos coronéis da época, que estávamos morando em uma favela. Para mim, tudo era novidade: a tv em preto e branco, da Colorado, onde eu podia assistir ao Sítio do Pica pau amarelo; a praia; o Parque da Cidade; a atmosfera que mudou repentinamente, com eles fazendo das tripas coração, orçamento apertado e nos colocando em escola particular, para que a nossa vida, quem sabe, fosse mais fácil. Depois de um tempo na Vasco da Gama, nos mudamos para a Federação. O meu pai, saía todos os dias exatamente as 06h:12m (era o horário que o despertador me acordava), descia a ladeira que dava para o Vale da Muriçoca e subia a do Engenho Velho, numa aventura a pé até a Faculdade. Em algumas vezes, víamos a figura minúscula do meu pai subindo a ladeira, e ele nos dava um tchauzinho ao longe. A tarde se embrenhava como professor, nas aulas na Escola Polivalente do Nordeste de Amaralina, até depois das 22h. A minha mãe, dava aulas inicialmente na Escola Cupertino de Lacerda, na Amaralina e depois, passou a lecionar na Escola Mário Costa Neto, no Parque São Brás, pela manhã e a tarde. A noite, ficava até as 22 e pouco, na UNEB do Cabula, em sua imersão, na primeira turma do curso de Pedagogia, pagando caro pelo transporte no carro de uma colega, porque não havia ônibus até o seu destino. Eu tinha uns cinco anos e meio, o meu irmão, três e a minha irmã, oito. No cotidiano atropelado, nada nos faltava.

   Os avós paternos de meus filhos moravam no Nordeste de Amaralina. O avô, filho de um contínuo do Banco do Brasil e de uma dona de casa, cursou Economia na antiga Frederico (referência naquele tempo). E a avó, filha de um mestre de obras e uma empregada doméstica, estudou Biologia, na UFBA. Negros, de bairro pobre, numa Salvador desigual. Me lembro de Dona Aninha relatar os livros abertos a luz de velas, para não aumentar a conta de energia elétrica e as poucas roupas de que dispunha para estudar. Os dois, também trabalhando 40 horas e com filhos pequenos. Um deles, prematuro de seis meses, há 45 anos atrás. Os avós maternos e paternos dos meus filhos, venceram distâncias geográficas, sociais e econômicas. Driblaram o preconceito e as limitações. Num tempo tão longe das discussões do agora! Minha mãe e minha sogra, num tempo em que as mulheres não tinham sequer esse discurso afiado, na ponta da língua e as jornadas se estendiam, pelas noites afora, porque antes de serem estudantes e profissionais, tinham que cumprir o seu papel de mulher. Eles sim, são as grandes referências dos meus filhos. Porque depois do exemplo que nos deram, apenas precisávamos corresponder ao legado grandioso que nos deixaram...

domingo, 23 de agosto de 2020

Por um longo tempo eu fui a filha do meio. Nem numa ponta, nem em outra. Nem revestida da autoridade da mais velha, nem da vulnerabilidade que recaía sobre o caçula. Nem o colo do primogênito, nem o do mais novo. Eu não sei se foi devido a esse lugar em que eu estive, mas muitas vezes eu me coloquei no meio termo. Eu permaneci filha do meio, mesmo quando já havia perdido esse posto para a chegada de mais um irmão. Escolhi ser filha do meio na minha relação com os outros. E aceitei os meios abraços, os meios sorrisos, as meias verdades alheias. Mas chegou um tempo, em que eu me cansei dessa temperatura morna e rompi com a rigidez da posição em que me coloquei.  Eu descobri que eu era volátil, como todo o resto. Ora eu tinha a maturidade que se esperava da filha mais velha. Ora a imaturidade do caçula. Ora eu dava passos confiantes. Ora vacilantes. E por muitas vezes eu também estava no entrelugar. Mas nunca mais estive metade, meio, parte. E passei a me retirar, onde não pudesse permanecer inteira...

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Quando você passar pela estrada que leva a Canabrava e avistar essa casa, não a imagine como qualquer canto, na beira do caminho. Essa é a casa da Ponta da Serra! Foi construída por meu avô materno, ali pelo início dos anos 70, antes mesmo do meu nascimento. Esse nome, Ponta da Serra, reverbera em mim, como o outro lado de um mundo feliz em que eu estive, por alguns anos. Do lado de lá da estrada, passava um riacho. Em alguns dias eu estava lá, água escorrendo em festa, ao lado de minha irmã, de tia Tina, de minha avó Anália. Em outros, eu estava com dor de garganta, ou com febre, ou com algum sintoma. A menina frágil e doentinha, mas sempre cercada. E sempre chorosa. Eu, em minha natureza dada a calundus, que aos olhos dos que me rodeavam, eram as vontades feitas, mas que para mim era um misto de incompreensão e tristeza. Uma menina que tinha mãos e braços a sua volta para acolhê-la, mas que chorava por dentro. E essa casa, que já existia quando eu passei a existir, era um lugar recôndito, um lugar onde eu podia olhar em volta e chorar por dentro a vontade, aos três, quatro, cinco anos de idade. Vovô Minervino em seu jipe verde, a gente batendo a cabeça na capota do carro, nos solavancos da estrada. 

Em um desses dias apareceu uma bola de fogo, no alto, perto da serra. Ora abaixava, ora levantava. Vovô Irineu, meu avô paterno disparou uns tiros em sua direção e ela apenas subiu um pouco mais, mágica, sem se explicar. Um misto de curiosidade e medo. Os adultos passaram dias levantando as suas hipóteses: era ouro encantado, a espera de um ser corajoso que fosse enfrentar os mal assombrados, as livusias, que apareceriam até que fosse desenterrado. Era apenas o reflexo de algum tipo de metal enterrado na serra, enganando nossos sentidos. Não havia energia elétrica. Estávamos na porta de casa, sob a luz fraca de lamparinas e lampiões a gás. Eu dormia e acordava no colo de Dé, a doce ajudante de minha avó. E sonhava que eu corria em direção a bola de fogo, que voava sobre minha cabeça. 

Há pouco tempo me surpreendi com alguém falando numa comunidade próxima dessa casa, sobre a bola de fogo encantada. Ela ainda existe! Resistiu em todos esses anos, mesmo com a chegada da energia, com muitas casas vazias, com o sumiço das assombrações. Sinal de que ainda não apareceu nenhum herói disposto a desvendá-la.

Eu não sei quando aquela casa deixou de pertencer ao meu avô. Mas em todas as vezes em que passo em frente a ela eu volto a ser aquela menina e tenho vontade de chorar por dentro, todos os choros que engoli, em todos esses anos e chorar de alegria por vê-la inteira, baú guardando minhas memórias, em silêncio. Tenho vontade de chorar por dentro, até que as lágrimas caiam, do lado de fora e encham o leito do riacho, que também secou...


 


quarta-feira, 22 de julho de 2020

Em todas as vezes em que eu abro gavetas, caixas, pastas, eu me vejo em rascunhos, na minha letra em mutação, na grafia de outros; em cartões, versos de panfletos, folhas amassadas; eu estou esparramada em blocos, cadernos, páginas soltas, capas arrancadas, rasuras, em espaços e tempos diversos. Talvez por isso seja tão difícil me juntar, num resumo breve, num lugar... Eu sou a escrita de tempos difíceis e brandos, o subir e descer da caneta em folhas em branco e rabiscadas. A escrita é a minha estrada...


domingo, 12 de julho de 2020

Eu acordo
janela aberta
para um céu azul.
Estou presa aos meus silêncios
queimando
em meus próprios incêndios.
Mas o céu continua intenso
em seus azuis.
Meu ego rui
sacada abaixo.
Eu me despedaço
enquanto tons celestes
me inquietam
a porta antes sempre aberta
agora está fechada
minh'alma enxovalhada
nessa paleta de cores
minhas dores em contraste
angústias
embates
tudo, tudo, arde, arde, arde...
enquanto me vasculho de norte a sul
percebo que o caos
é azul...
                (Tâmara Rossene)


sexta-feira, 3 de julho de 2020


Dizem que a cidade é de todo mundo
mas ela guarda um buraco profundo
que engole famintos
e  moribundos.

Dizem que na cidade
se você acredita
tudo é possível.
Mas ela torna os gritos
dos desamparados
inaudíveis.
Gente que proclamam "de bem"
em insensíveis.

Dizem que para qualquer um
a paisagem da cidade subsiste
mas há um rol de meninos
mulheres e homens
cegos e invisíveis
pela fome.

A cidade é de quem come...
                         
(Tâmara Rossene)


P.S. Fotografia no Centro de Recife - PE, 2020.

domingo, 21 de junho de 2020

Eu passei uma boa parte do ensino fundamental e o primeiro ano do ensino médio, nos corredores do Colégio Santa Dorotéia, no Garcia, em Salvador. Vez por outra, me sobrevém as imagens da igreja, da gente brincando de garrafão na brita do estacionamento, das histórias misteriosas da gruta, do piano tocado por Irmã Nunes, das músicas no mês de maio. Um lugar que me presenteou com amizades que eu tenho carregado pela vida afora. Às vezes, me vem imagens da casa da minha avó, na Praça Ives de Oliveira, aqui em Ibotirama, das andorinhas de louça nas paredes do corredor, dos pés de goiaba, das gangorras, do escritório do meu avô. Eu também fico olhando a distância, a casa dos meus pais, na Federação, em Salvador, a escada do fundo, de onde a gente subia e dava no telhado, a vista para a Vasco da Gama e para o Engenho Velho, de onde avistávamos o meu pai, subindo a ladeira para ir a Faculdade de Direito, na Católica. E eu vejo cenas da nossa casa em São Cristóvão, da árvore carregada de flores cor de rosa, que plantamos na entrada da casa, do baú vermelho cheio de brinquedos, da vista prá estrada do Cia. São lugares sagrados que não existem mais da mesma forma no plano material, mas que os acesso em espaços recônditos que construí aqui dentro. São espaços privilegiados onde me vejo sendo eu mesma, em construção e reconstrução. São os lares que habitei de forma permanente ou temporária e que no agora, residem num altar da memória, santificados pela paz de espírito que eu sinto ao lembrá-los...


P.S. Uma das poucas fotos da época do Dorotéia, num dia em que fomos fazer um trabalho na fábrica de chocolates Chadler, na Cidade Baixa, em 87.

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Sobre auto-cuidado ... Eu me lembro das minhas avós fazendo os seus banhos de assento, com folhas, sal, gotas de limão. Tomando garrafadas preparadas com ervas e cachaça. Tudo indicado aos cochichos, nos cantos da casa. A minha avó fervendo folhas de laranjeira para embeber o meu cabelo naquela água amarela, quando me deitava em seu colo e me colocava de ponta cabeça na bacia. O cheiro de laranja caindo em formato de água morna, acalmando até a minha alma. Do mastruz pisado no leite, da ingestão de cascas de abóbora ressecadas no sol, da banha de galinha derretida no café, dos males curados em receitinhas caseiras viajando no colo da oralidade. Lembro das minhas tias em volta do bule de café com bolo, cochichando segredos com as amigas, umas consolando as outras, em seus relatos de decepções e glórias amorosas, ainda tão jovens! A minha mãe tarde da noite, depois de ter dado aula o dia inteiro e ido prá faculdade, limpando a pele do rosto com leite de rosas. Da minha filha junto com as outras meninas sussurrando as suas dores nas tardes trancafiadas no quarto, como se o mundo fosse acabar.... Eu passei anos numa guerra declarada para honrar as contas, os compromissos, as metas, etc. etc., guerreando  (embora não percebesse) contra mim mesma, minando meu auto-cuidado. De uns anos para cá, voltei a ver o meu reflexo no espelho. Comecei pedalando timidamente em uma bicicleta de cestinha, segui para o pilates, depois para um ciclo de atividades físicas mais intensa. Depois eu voltei a olhar para o meu cabelo, para a pele, o espírito, a mente, minhas vertentes esquecidas pelo tempo e pela pressa. Eu me senti tão encorajada que até tatuei o meu corpo!
Estava lembrando que algumas fotos que postei em redes sociais registrando as minhas investidas no campo das atividades físicas, parece ter incomodado uma moça conhecida, que não se conteve em seus comentários, com pessoas próximas. E eram apenas postagens sobre o meu próprio corpo: imperfeito, aquém dos padrões estéticos, fora da curva da idade em que se "deve" expor os corpos; mas se modificando a partir da nova ótica que me impus do auto cuidado. Eu, mulher, pós 40, expondo meus avanços nas escolhas que fiz sobre a minha própria saúde e aparência, querendo apontar caminhos para outras, que assim como eu, margeiam por caminhos repletos de inseguranças e julgamentos.
Isso me trouxe outras tantas reflexões. Percebo que para além das futilidades cotidianas, muitas mulheres postam fotografias e selfies, numa tentativa desesperada de recuperar esse lugar em que se olham novamente e se aceitam. Por isso há um tempo eu parei com a crueldade dos julgamentos. Me veio em mente os auto retratos de Frida. E embora a gente não enxergue, a dor está por detrás de muitas dessas fotografias despretensiosamente postadas. E me veio a tona, as tantas mulheres que sequer puderam optar em abrir mão desse cuidado sobre si. O cotidiano corrido, o trabalho exaustivo, a vontade de chegar em casa e apenas ter a sensação de tirar os sapatos (eu já estive nesse lugar). Por isso quando ouço comentários assim, penso que ainda falta muito para que algumas mulheres rompam as algemas do sistema machista em que estão mergulhadas. Para aplaudir o amor próprio que chega as outras. Para compartilhar os seus próprios medos, compreender as dores alheias e dividir o espelho...

P.S. A foto, foi do período em que eu voltei a  exercer o auto cuidado.


quarta-feira, 29 de abril de 2020

Essa coisa de pedir a benção é uma marca forte da minha infância e adolescência. Me lembro que não podia faltar jamais, em nenhum dos cumprimentos aos meus avós, paternos ou maternos. Às vezes, eu fazia isso correndo, pensando que meio minuto sequer, parando e pedindo: benção vovó, parecia que iria atrasar uma vida. E aí, antes que eu pensasse em fugir sem ser notada, eu ouvia: Dê cá a benção! Mas de todos os desejos e profecias lançadas: "Deus te dê saúde"; "Deus te dê muitas riquezas"; "Deus te dê inteligência"; "Deus te faça feliz"; "Deus te guie", e por aí adiante, desde muito cedo, eu era tocada em todas as vezes em que ouvia de vovô Irineu (meu avô paterno): "Deus te crie para o bem". E cada vez em que o tempo passava e eu fui tendo maior compreensão sobre o que me rondava, essa frase assim profetizada, me parecia de uma grandeza! Porque não era sobre a minha saúde física, nem sobre os tesouros materiais que eu acumularia, nem nada que rondasse apenas o meu próprio umbigo. Ser criada para o bem era seguir para ser pessoa digna; para ser alguém que existisse para além do meu núcleo familiar e das minhas conquistas pessoais. Era ser criada para pensar nas consequências das minhas ações, no senso coletivo, humanitário; no outro, nos outros... E no agora, muitas vezes em que eu me encontro nessa ânsia de proferir bençãos sobre os meus filhos, eu penso que os quero sendo criados para o bem. São os desejos de vovô Irineu, de que os seus, sigam pelo tempo, sendo mais do que mero indivíduos sobre a  terra. São os desejos de meu avô, ecoando pelos anos, de que sejam construtores de um novo mundo. Deus te crie para o bem...


P.S. Na foto, vovô Irineu.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Eu ouvi muitas vezes de vovô Minervino, a história de como ele conheceu vovó Anália. Me lembro que na maioria das vezes, ele contava na presença dela, olhando repetidas vezes para o seu rosto, buscando talvez aprovação pela lembrança, ou lhe arrancar algum tipo de afeto, ou mostrar que a memória de quando a viu pela primeira vez, nunca o abandonara. E eu achava lindo a forma como ela apenas sorria e dizia: ai, ai. Aliás, esse "ai, ai"da minha avó, tinha uma sonoridade e um significado que só nós, que passamos um longo tempo ao seu redor, sabemos o que representava, mas não sabemos explicar. O meu avô olhava para a sua Anália e dizia que a primeira vez em que a viu, ela morava na rua Primeiro de Janeiro, com Antonio Matias, meu bisavô e a sua companheira, Zulmira, que era a madrasta da minha avó. E ele contava que ele, menino que morava na roça, vinha às vezes até a "cidade" para fazer compras. Que estava esperando alguém próximo a residência do meu bisavô (não sei se a pessoa entrou no mesmo lugar). De repente avista aquela menina, com a vassoura na mão, varrendo o corredor da casa, com a porta aberta. Segundo vovô, ela era tão magrinha, que parecia que ia se partir ao meio. E que ela e a vassoura pareciam algum tipo de parceiras, ambas de igual forma, fininhas. Minervino então achou aquela moça de vestido estampado, bailando com a vassoura entre os braços, "uma coisa linda"! E ficou do lado de fora olhando hipnotizado prá sua ninfa. Ela então passou a sorrir alto. Ele descrevia isso, imitando os sons: kkkkkkkkk, kkkkkkkkkkk. E Zulmira, a madrasta da minha avó, gritava lá de dentro: varre essa casa, Anália! Anália olhava pro moço e o moço devolvia o olhar prá Anália. E ela valsava com a vassoura, varrendo o mesmo lugar, para não perder o ponto exato da vista e do olhar. E Zulmira repetitiva: varre essa casa Anália!. Anália, olho fixo no moço que a fitava, em sintonia, vassoura indo e vindo: kkkkkkkkk, kkkkkkkkk. Ele concluía dizendo que foi embora sem nunca mais ter se apartado daquela lembrança, da moça bonita gargalhando com a vassoura, sem desviar os olhos dos seus.
Só passado algum tempo, Antonio Matias, meu bisavô, levou a sua loja de tecidos para ser instalada na Canabrava, o mesmo lugar onde vovô Minervino morava. E foi à partir daí, que a moça do gargalhar alto, do vestido florido e do corpo esguio, passou a ganhar um novo formato em seu cotidiano.


quinta-feira, 16 de abril de 2020



Era um período difícil aquele. Eu e o meu companheiro havíamos deixado de ser “colaboradores” de multinacionais do setor de telecomunicações, para subcolocações em empregos com os quais não nos afeiçoávamos. Salvador havia se transformado na capital do desemprego e nós viramos estatísticas. Eu passei a dar aula num contrato precarizado de trabalho, numa escola pública da Sussuarana. Dois meses de salário atrasado, meu companheiro correndo como distribuidor de medicamentos em farmácias de bairros. Fizemos uma viagem do céu ao purgatório, em nossas carreiras profissionais. Todos os dias eu saía de casa, para encontrar uma escola depredada em sua estrutura física e nos laços que se estabeleciam entre alunos, professores e corpo de funcionários. Descobri que apesar das anotações na caderneta de matemática, em todas as séries, com conteúdos tido como dados, raríssimos alunos meus da quinta a oitava série, sabiam efetuar as quatro operações. Um dia uma aluna me questionou: Professora, conta de vezes é igual a subtrair? Eu estava repleta de problemas pessoais, mas precisava ensinar algo naquele lugar. Posicionar a voz era um problema, separar os interessados era outro. No horário do lanche as carteiras eram atiradas para o alto. Eu estava num cenário de guerra. Resolvi então copiar o livro de probleminhas da primeira série da minha filha e começar pela tabuada. Passei a montar jogos, em que meninos e meninas disputavam. Percebi então que a linguagem da disputa, da luta, da sobrevivência, era conhecida por todos. A estratégia foi montada em cima de combates, porque todos eles sabiam a linguagem de lutar pela vida. E assim a tabuada foi deixando de ser uma incógnita na vida daqueles meninos. Mas eu sempre me perguntava se além do salário minguado, o que mais eu tinha para fazer ali, saindo de casa todos os dias sem qualquer motivação, numa das fases mais difíceis em que tinha mergulhado.
Foi num dia assim, que eu fiquei na escola no horário do almoço e uma professora chamada Regina, evangélica, enérgica, acolhedora, me disse que havia criado um grupo há alguns meses com os alunos mais complicados, prá fazer uma leitura reflexiva da Bíblia, no horário do almoço. Que ninguém acreditou, mas que ela queria me mostrar o resultado. Eu fui desmotivada e descrente. Cheguei naquela sala, com um grupo de 12, 15 jovens lendo  o evangelho e entoando louvores. Eu ali, sem saber porque, mas tão absorta em meus próprios abismos. Pensando naqueles jovens como mero coitados, como vítimas de um sistema cruel. Que diferença faria eu naquele lugar? 
De repente um daqueles meninos me pede para ficar no meio do círculo e diz que quer orar por mim. Eles ligam um pequeno cd player e toca uma música que eu nunca tinha ouvido, a cantora era Ludmila Ferber: “se tentarem matar os teus sonhos, sufocando o teu coração, se lançaram você numa cova”... E os meninos, periféricos, em condições de desigualdade, sem estrutura sanitária em suas casas, sem escola digna, sem alimentação decente, estendem as mãos sobre mim e começam a pedir a Deus o que eles não tinham. E rogaram por prosperidade, saúde, sonhos realizados. E eu fui aos poucos me emocionando. Ali eu percebi que eu, a professora com formação, a que ia todos os dias contrariada na minha labuta, por se julgar muito além daquele lugar, não tinha nenhum senso de humanidade e acolhimento para dar a eles. Quem era eu? Depois de cantarem ao meu redor e de profetizarem e de clamarem aos céus por mim, esquecendo as próprias dores, a minha vida se transformou... Me vieram tantas realizações! Mas de lá para cá, a maior lição, a que nunca foi esquecida, foi o meu senso de pequenez...


P.S. A foto é da época.

terça-feira, 24 de março de 2020



Eu não me lembro quando foi que a casa se transformou em ruína, porque a cada dia em que eu a via, parecia faltar um pedaço. Mas eu me lembro de tê-la sempre numa das curvas da estrada que leva ao Boqueirão, a Canabrava, a Barriguda, a destinos que eu me habituei a percorrer. Me recordo de uma foto de um fusca, não sei se azul ou amarelo, em algum lugar do passado, em frente a ela. Noutro dia a minha mãe me falou dessa casa, como se fosse uma amiga próxima. Disse que ela pertencia a Zé Valente, um pernambucano que veio parar nesse cenário, mas ela não sabe como, nem os porquês. Lá nas memórias da minha mãe, ele tinha três filhas: Zulmira, Cindá e uma outra da qual não se recorda o nome. Se recorda que a mesma família também tinha uma casa na rua Primeiro de janeiro e intercalavam as estadias, entre uma e outra. Uma das filhas trabalhava em uma loja de nome Jóia e vendia tecidos. Outra delas costurava. Talvez por isso, a minha mãe tenha associado essas  lembranças com a memória dos vestidos das moças: rodados, com pregas, babados, laços, saiotes, cheios de vida, de volume e de cor. Ela se deteve por longos minutos descrevendo as moças alegres, em seus vestidos encantados. Depois se voltou para os rapazes. Me conta que eram dois e que um deles, Onofre, ainda vive em seus noventa e poucos anos e que outro dia teve notícias da sua existência. Mas e a casa? ah! minha mãe suspira e diz que a casa lhe roubava a atenção e a de qualquer transeunte daquelas estradas, com seu alpendre repleto de plantas de todos os formatos, balançando ao sabor dos ventos. E assim ela paira no ar, descrevendo a casa como um lugar mágico, na beira da estrada, com as plantas se misturando as cores vibrantes das paredes, as saias rodadas e a risada das moças. Depois de ouvir esses relatos, quando eu ouço o vento acariciar as ruínas, eu me lembro da risada das meninas nos pensamentos distantes de minha mãe. O vento parece sacudir os vestidos das moças,quando toca o alpendre e as ruínas, enquanto se transformam em poeira do tempo, sorriem...

domingo, 16 de fevereiro de 2020



Eu sou uma junção de pessoas
e lugares
e isso é tão infindo
que não sei como tudo em mim cabe.
Há mundos, rostos
palavras, costumes.
Cada canto
cada pessoa
vou acomodando
no fundo.
Por isso eu existo
em explosão
e em sentimentos profundos.
Mas apesar de carregar o universo
e de ser imensamente povoada
há sempre um vazio
um nada
essa sensação.
Apesar de tudo
há sempre
solidão...
                             (Tâmara Rossene)



sábado, 15 de fevereiro de 2020


Dentro de mim
há um paraíso
cercado por uma fortaleza.
Mas esse arame farpado
sou eu mesma
envolta aos temores
de minh' alma.
Eu sou água límpida
sob o peso
da muralha.
                        (Tâmara Rossene)




quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020



Os cremes.
As cintas.
As promessas.
Reduzir e silenciar o corpo
para caber na métrica
da estética.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Era um período qualquer da década de 80. O final de ano parecia estranho. A minha avó havia infartado meses antes e faria logo após as festas, a cirurgia de ponte de safena. Estávamos todos em Salvador, eu tinha lá pelos doze anos e em meio a agonia, a minha mãe não teve tempo ou clima para providenciar a tal roupa branca do ritual da passagem de mais um ciclo. Por minha própria conta, eu fui até uma costureira perto de casa e com o meu vestido da primeira comunhão na mão e me sentindo a própria estilista, saí com o figurino pronto. Quando partimos para saudar o novo ano, junto a minha avó, parece que ninguém reparou na minha vestimenta. Mas para arrematar, eu passei a mão em umas flores plásticas amarelas, em um jarro sobre a mesa e prendi com um grampo, um ramalhete no meu cabelo. Todo mundo tenso e preocupado nos abraços de feliz ano novo e eu me sentindo fantástica! Naquele final de mais uma estação, fui eu por mim mesma. Não criei expectativas com o estado de saúde da minha avó, apenas aproveitei cada segundo ao seu lado. Não escolhi a roupa a dedo; não esperei o cuidado e a paparicação de sempre; não criei expectativas com a festa; sequer expressei os meus calundus costumeiros. Mas me senti cheia de poder, aos doze anos, por ter contado comigo mesma em meio as circunstâncias. O ano passado foi repleto de tribulações e parecia interminável. Ontem eu troquei de roupa três vezes, porque não houve tempo de escolher o figurino de mais um ritual da virada (a gente se diz desapegada, mas de repente se importa com cada bobagem!). Então eu me lembrei da menina de 12 anos e saí confiante, de que neste ano que se foi, em meio ao caos, eu pude contar comigo mesma, como naquela noite. Eu não coloquei um ramalhete no cabelo, mas me senti fantástica! Agora estou como em todo ano, de frente para o mar aberto (é assim que eu me sinto) de 2020. Pensando em como eu aprendi a reduzir as expectativas, o que não significa deixar de tê-las. O mar está lá, em toda a sua amplitude, mas eu aprendi a me jogar nas águas, sem esquecer de ser terra firme...