quinta-feira, 16 de abril de 2020



Era um período difícil aquele. Eu e o meu companheiro havíamos deixado de ser “colaboradores” de multinacionais do setor de telecomunicações, para subcolocações em empregos com os quais não nos afeiçoávamos. Salvador havia se transformado na capital do desemprego e nós viramos estatísticas. Eu passei a dar aula num contrato precarizado de trabalho, numa escola pública da Sussuarana. Dois meses de salário atrasado, meu companheiro correndo como distribuidor de medicamentos em farmácias de bairros. Fizemos uma viagem do céu ao purgatório, em nossas carreiras profissionais. Todos os dias eu saía de casa, para encontrar uma escola depredada em sua estrutura física e nos laços que se estabeleciam entre alunos, professores e corpo de funcionários. Descobri que apesar das anotações na caderneta de matemática, em todas as séries, com conteúdos tido como dados, raríssimos alunos meus da quinta a oitava série, sabiam efetuar as quatro operações. Um dia uma aluna me questionou: Professora, conta de vezes é igual a subtrair? Eu estava repleta de problemas pessoais, mas precisava ensinar algo naquele lugar. Posicionar a voz era um problema, separar os interessados era outro. No horário do lanche as carteiras eram atiradas para o alto. Eu estava num cenário de guerra. Resolvi então copiar o livro de probleminhas da primeira série da minha filha e começar pela tabuada. Passei a montar jogos, em que meninos e meninas disputavam. Percebi então que a linguagem da disputa, da luta, da sobrevivência, era conhecida por todos. A estratégia foi montada em cima de combates, porque todos eles sabiam a linguagem de lutar pela vida. E assim a tabuada foi deixando de ser uma incógnita na vida daqueles meninos. Mas eu sempre me perguntava se além do salário minguado, o que mais eu tinha para fazer ali, saindo de casa todos os dias sem qualquer motivação, numa das fases mais difíceis em que tinha mergulhado.
Foi num dia assim, que eu fiquei na escola no horário do almoço e uma professora chamada Regina, evangélica, enérgica, acolhedora, me disse que havia criado um grupo há alguns meses com os alunos mais complicados, prá fazer uma leitura reflexiva da Bíblia, no horário do almoço. Que ninguém acreditou, mas que ela queria me mostrar o resultado. Eu fui desmotivada e descrente. Cheguei naquela sala, com um grupo de 12, 15 jovens lendo  o evangelho e entoando louvores. Eu ali, sem saber porque, mas tão absorta em meus próprios abismos. Pensando naqueles jovens como mero coitados, como vítimas de um sistema cruel. Que diferença faria eu naquele lugar? 
De repente um daqueles meninos me pede para ficar no meio do círculo e diz que quer orar por mim. Eles ligam um pequeno cd player e toca uma música que eu nunca tinha ouvido, a cantora era Ludmila Ferber: “se tentarem matar os teus sonhos, sufocando o teu coração, se lançaram você numa cova”... E os meninos, periféricos, em condições de desigualdade, sem estrutura sanitária em suas casas, sem escola digna, sem alimentação decente, estendem as mãos sobre mim e começam a pedir a Deus o que eles não tinham. E rogaram por prosperidade, saúde, sonhos realizados. E eu fui aos poucos me emocionando. Ali eu percebi que eu, a professora com formação, a que ia todos os dias contrariada na minha labuta, por se julgar muito além daquele lugar, não tinha nenhum senso de humanidade e acolhimento para dar a eles. Quem era eu? Depois de cantarem ao meu redor e de profetizarem e de clamarem aos céus por mim, esquecendo as próprias dores, a minha vida se transformou... Me vieram tantas realizações! Mas de lá para cá, a maior lição, a que nunca foi esquecida, foi o meu senso de pequenez...


P.S. A foto é da época.

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