domingo, 13 de setembro de 2020


Eu me lembro como você gostava de ser "milico" (embora não gostasse de ser chamado assim). Talvez porque naquele tempo, você não tivesse se dado conta de que os meninos pretos eram os que mais sentiam as balas dos fuzis dos milicos. Os meninos pretos e de riso largo como era o seu. E me lembro como você se sentia imponente sob a farda caprichosamente engomada. Como se ela o levasse para mais além. Como se houvesse um universo paralelo, onde você se sentisse com mais poderes. E me recordo em como eu media meticulosamente as palavras,  porque duvidava daquele lugar e não acreditava naquela lógica, mas não queria silenciar os assobios dos hinos, que você lançava no ar ao amanhecer, porque o seu rosto tinha expressão feliz. Até que você precisou ir mais além, na luta  pela sobrevivência.  E precisou guardar a farda e o traje de gala (impecavelmente engomados) na lembrança e em nosso guarda-roupa. E  foi então que descobriu que a farda não lhe salvaria. Nem do mundo real. Nem mesmo de si. Mas muitos meninos tem os mesmos olhos e o mesmo sorriso que eu conheci em você. E muitos deles também ignoram para onde os fuzis apontam. E ainda sonham que esse universo os salvará...


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