sexta-feira, 21 de setembro de 2018


A Promessa de Anália
 Era mês de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, padroeira da Canabrava. Sinal de festa, de cheiro de beiju de tapioca na casa de farinha, de passos apressados de mulheres na lida, nos quitutes, na arrumação das casas, da Igreja e dos meninos. Canabrava, um povoado de poucos habitantes, visão poética perdida na zona rural de Ibotirama, na Bahia, mas que poderia ter sido recortada de qualquer cantinho do Nordeste, com seus meninos de pés descalços, lombos de jegue carregados, repiques de sino e pouca chuva. Na frente das casas mangubeiras imponentes e seculares e atrás um córregozinho, pareciam gritar constantemente que no sertão há vida! 
Anália se criara em Canabrava. Dali só saíra aos 15 anos, após o casamento com Seu Mine, único amor que tivera na vida e que já lhe arrastava prá uma boda de ouro. Sua vida fora driblar as 05 pontes de safena, a pressão alta e o diabetes, entre gargalhadas em que ao final exclamava: ai, ai!, comidas e guloseimas “idecentes” de tão saborosas e proibidas para as suas restrições de saúde.
Entre as suas idas e vindas ao Hospital, três coisas não lhe abandonavam: a vaidade, a alegria e as promessas, que ela fazia aos Santos Padroeiros (Santa Rita era a preferida, porque nascera em 22 de maio). Pagava-as com foguetes, rezas encomendadas, velas e caminhadas até as capelas. Em Canabrava, na Barriguda e em tantos outros lugares, os Santos já foram testemunhas de sua devoção.
Naquele dia Anália esperava ansiosa a sua ida a Canabrava, pra rever contemporâneos, amassar a farinha de beiju, tão diferente da cidade e acompanhar a procissão que saía da igrejinha. Mas não é que na hora exata do carro partir, percebe que a sua sandália arriada, como chamava os calçados sem salto, tinha desaparecido! E corre daqui, corre acolá, nada de sapato! E ela repetia: mas uma sandália novinha, comprei só para isso! Diacho! Acode a nora, acode a filha, acode o marido, mas a sandália insiste em desaparecer. Lembram então que a festa é só daqui a três dias e que a nora partiria no dia seguinte e teria a incumbência de levar o tal calçado.
Anália então parte como de costume sorridente, não sem antes deixar recomendações, dona de casa zelosa que era e pra não esquecerem mais uma vez, não deixassem de levar a tal sandália. A nora já entre dentes, fingindo um sorriso, diz um não se preocupe um tanto quanto exasperado.
Ao chegar a Canabrava, revêem os amigos, provam das maravilhas naturais da roça, relembram fatos e tudo correria na mais perfeita paz, se não fosse a nora chegar com a notícia do desaparecimento, ou melhor, do não aparecimento da tal sandália.
Anália amua. Os sinos da Igreja já anunciam a procissão e parecem chamá-la. Todos lhe rodeiam a suplicar para ir com a outra que a nora zelosa (e precavida) levara e ela nada. Eram 70 e poucos anos de teimosia. Sai a Anália devota e entra a vaidosa. Que o sapato que lhe trouxeram não combinava com o tal vestido. Que comprara um exclusivamente para a ocasião. Alegam que as ruas são de barro, que o povoado e o povo, são simples, que ninguém irá reparar. Mas nada. Surge uma amiga e anfitriã e cede o próprio sapato, também igualmente novo, que comprara naquela semana na cidade... Ela olha e faz cara de desdém, agradece, mas não foi aquele o escolhido por ela.
Novas adulações: filhos, marido, amigos, parentes, vizinhos. O sino tocando e o clamor de vozes em torno de Anália. Ao que o filho impaciente, sugere sem pensar, talvez pra dar uma idéia absurda, pra importuná-la ou para acordá-la de tamanha falta de flexibilidade. E diz: ô minha mãe, porque a Senhora não vai descalça? Finge que está pagando promessa e pronto. Acaba o problema.
Todos sorriram desdenhosos. E um clarão ilumina os olhos de Anália. Rapidamente volta-se ao espelho, ajeita os cabelos grisalhos, o vestido impecável. Coloca o cordão de ouro. Tira a sandália emprestada da amiga e dá o braço ao marido. Todos correm a fazê-la desistir da idéia. Mas percebem ser em vão.
Minutos depois, atrás do cortejo, explodem os foguetes, se misturando ao som dos hinos entoados. Em meio a fila indiana, vai Anália de vela na mão, reza nos lábios e os pés calmamente tocando no barro vermelho.
Atrás da fila e na porta das casas, o comentário é um só: mulher de doutor, pagando promessa descalça. Sem vaidades! Isso é que é simplicidade!
E para todos Anália fazia um meneio de cabeça e dava um sorriso, sem perder a alegria e a devoção.


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