Disseram-me que a vida é eterna guerra, luta
e eu que só me permito uma labuta:
deter-me em frente as belezas do caminho!
(Guerrear é como me perder de mim mesma)
Crônicas, Poesias,Fotografias, Escritas cotidianas para não sucumbir...
Quando meus avós materrnos Anália e Minervino moravam ali na esquina da JJ Seabra (antiga rua do Quebra Perna), lembro do entra e sai dos vizinhos: Dona Tavinha, Dona Francisca, Dona Honorinda; do outro lado, Dona Nô, Dona Caçula. Todos tinham algo plantado no quintal. A casa dos meus avós era uma espécie de pomar e ainda abrigava um galinheiro e um chiqueiro. E do nada, aparecia alguém com pinha, goiaba, mamão, romã, ovos. Eu, menina chorosa, me sentia cuidada por todos, naquela frase: O que foi, Taminha? As crianças, eram cuidadas pelo coletivo e entravam e saiam das casas, com total liberdade. Num tempo, em que as portas das casas se fechavam tarde, sob a luz de lamparinas fracas e lanpiões a gás.
Ali na rua primeiro de janeiro, onde moravam vovô Irineu e Vovó Zefa,meus avós paternos, lembro da vizinhança dividida com Seu Izidoro, Seu Fabriciano, Seu Tomás. E do café da tarde, tomado com Dona Ruzu.
Tenho a impressão, de que tínhamos mais fartura e vivíamos mais felizes. O que me leva a crer, que a vida faz mais sentido quando vivida assim, em comunidade. E me faz acreditar, que a partilha é o caminho...
Débora era minha melhor amiga, na terceira série primária; no Colégio Santa Doroteia, no Garcia,em Salvador. Pegávamos o mesmo ônibus para a Federação, na rua Araújo Pinho, no Canela. Ela descia no Parque São Brás e eu, dois pontos depois, ali na altura da TVE. Conversávamos sobre gibis e livros e éramos boas alunas. Mas, depois de muitos meses de amizade, Débora se transformou num pesadelo. Certa vez eu estava andando com umas amigas e vizinhas, pelo Parque São Brás e encontramos uma cartela de fichas telefônicas. Sem sabermos para quem ligar, digitei no orelhão, o único número de telefone que eu sabia de cor: o da casa de Débora. Foram mais gracejos ao telefone, com minhas três vizinhas se revezando, do que conversa propriamente dita. Afinal,naquele tempo, telefone fixo em casa, era um luxo. E uma simples ligação telefônica (mesmo nos telefones públicos), era novidade.Depois soube que elas gravaram o número e que foram muito os "trotes", para a casa da minha amiga do colégio. Eu nunca soube se essa foi a razão, mas o fato é que a minha colega e companheira do recreio e da volta prá casa, passou a me perseguir todos os dias, criando situações diversas para me ridicularizar. Na época, uma personagem feia de uma novela, chamava-se Ieda. E esse passou a ser o nome pelo qual ela me chamava. Simulou um concurso de beleza e disse que eu ganhei o título da mais feia da sala. Essa notícia ela deu, passando um papel com a informação, de mão em mão. E não parou por aí. Espalhava prá escola toda que eu tinha bafo de onça.Jogava bolinhas de papel em mim e dizia que eu era a lixeira. Me convidava para participar de jogos de baleado, porque sabia que eu jogava mal e fazia comentários maldosos durante o jogo. Nos jogos de garrafão, no estacionamento da escola, me dava cotoveladas e sorria vitoriosa, com o meu desequilíbrio, quando eu caía em meio aos pedregulhos.
Tentei contar a minha mãe sobre o meu sofrimento,mas o que ouvi foi que Débora tinha inveja do meu cabelo liso, já que ela tinha o cabelo "duro". Que ela parecia um machão. E que eu era boba por não dizer isso a ela para me defender. A minha tristeza recorrente, levou a minha mãe até a escola, procurando ajuda da doce professora Marly, que até então, nada havia percebido. A represália a Débora, pois a notícia chegou aos pais, tornou a minha vida mais difícil. Os apelidos aumentaram. As risadas de deboche também. Débora colocava o pé na minha frente para que eu tropeçasse. Puxava o meu cabelo. E incentivava a turma a rir das minhas respostas na sala de aula. Mas o que mais me incomodava, era a sua indiferença comigo. Eu a observava a distância no ponto de ônibus, no trajeto para casa, na sala de aula. Eu queria contar sobre as últimas leituras. Sobre os livros pegos num ritmo frenético,na biblioteca do colégio. Mas Débora me ignorava. E me maltratava.Para completar, passou a jogar bola (ela era ótima nisso) com Charles Duprat, o menino por quem eu era apaixonada. Eu chorava confidenciando tudo a freira da biblioteca (irmã Ieda). Eu olhava para aquela menina da minha idade (12 anos), apesar de um pouco mais alta e forte; morena, com cabelos crespos repartidos ao meio e presos em fitas azul marinho, lábios e nariz grossos, considerada feia para os padrões de beleza da época. Olhava para a minha aparência delicada e pensava no que dissera minha mãe. E em meio ao suor escorrendo nas mãos e na testa, eu me perguntava porque eu não reagia a maldade de Débora. A verdade é que eu tinha medo. Eu a achava forte. E me considerava frágil!
Eu estudei quatro anos com Débora me maltratando. E depois de mudar de cidade e de colégio e de ficar dois anos longe, eu voltei para o Santa Dorotéia. Na matrícula, apresentaram-me duas salas. Uma com alunos novos e outra, com veteranos.Numa delas, lá estaria minha algoz. Eu engoli em seco, tremendo; e escolhi ficar na sala de Débora, que agora mal me olhava de longe, parecendo até meio constrangida. Apesar de termos crescido, as memórias ainda me amedrontavam. Eu ainda suava muito quando a via. Mas foi só quando compreendi que todo o poder que Débora julgava ter, foi dado por mim. Só quando descobri, que ela precisava da minha fragilidade, prá se manter forte. Perante ela e perante os demais. Só à partir daí, as coisas começaram mudar.
Em todas as vezes em que eu vinha passar as férias em Ibotirama, voltar pra Salvador era um passo difícil. Partir pra longe da família de origem, dos amigos, da paisagem. Vir morar aqui em definitivo parecia muito bom, pelos reencontros. Mas deixar o mar e todo o fluxo que o envolvia não foi fácil! Então quando me dizem que é preciso encerrar ciclos, eu penso em todas as minhas partidas e chegadas. E me recordo que na tristeza do partir, o que me consolava eram as memórias felizes que me acometiam. Nunca é sobre a coragem de encerrar. Mas sobre a forma como carrego essas memórias. Se elas pesam ou me embalam. Tudo ficou mais fácil, depois que eu descobri que é a minha visão sobre aquilo que deixei, que ditará meu novo caminho...
Enquanto isso não acontece, posto por aqui, uma foto tirada por minha irmã, Orlamara, do Velho Chico, em Bom Jesus da Lapa, com o sorriso dessas moças, repletas de vida,em sua interação com o rio, prá acalmar nosso saudosismo e alegrar nossas almas ribeirinhas...