sexta-feira, 30 de agosto de 2024

 Débora era minha melhor amiga, na terceira série primária; no Colégio Santa Doroteia, no Garcia,em Salvador. Pegávamos o mesmo ônibus para a Federação, na rua Araújo Pinho, no Canela. Ela descia no Parque São Brás e eu, dois pontos depois, ali na altura da TVE. Conversávamos sobre gibis e livros e éramos boas alunas. Mas, depois de muitos meses de amizade, Débora se transformou num pesadelo. Certa vez eu estava andando com umas amigas e vizinhas, pelo Parque São Brás e encontramos uma cartela de fichas telefônicas. Sem sabermos para quem ligar, digitei no orelhão, o único número de telefone que eu sabia de cor: o da casa de Débora. Foram mais gracejos ao telefone, com minhas três vizinhas se revezando, do que conversa propriamente dita. Afinal,naquele tempo, telefone fixo em casa, era um luxo. E uma simples ligação telefônica (mesmo nos telefones públicos), era novidade.Depois soube que elas gravaram o número e que foram muito os "trotes", para a casa da minha amiga do colégio. Eu nunca soube se essa foi a razão, mas o fato é que a minha colega e companheira do recreio e da volta prá casa, passou a me perseguir todos os dias, criando situações diversas para me ridicularizar. Na época, uma personagem feia de uma novela, chamava-se Ieda. E esse passou a ser o nome pelo qual ela me chamava. Simulou um concurso de beleza e disse que eu ganhei o título da mais feia da sala. Essa notícia ela deu, passando um papel com a informação, de mão em mão. E não parou por aí. Espalhava prá escola toda que eu tinha bafo de onça.Jogava bolinhas de papel em mim e  dizia que eu era a lixeira. Me convidava para participar de jogos de baleado, porque sabia que eu jogava mal e fazia comentários maldosos durante o jogo. Nos jogos de garrafão, no estacionamento da escola, me dava cotoveladas e sorria vitoriosa, com o meu desequilíbrio, quando eu caía em meio aos pedregulhos. 

Tentei contar a minha mãe sobre o meu sofrimento,mas o que ouvi foi que Débora tinha inveja do meu cabelo liso, já que ela tinha o cabelo "duro". Que ela parecia um machão. E que eu era boba por não dizer isso a ela para me defender. A  minha tristeza recorrente, levou a minha mãe até a escola, procurando ajuda da doce professora Marly, que até então, nada havia percebido. A represália a Débora, pois a notícia chegou aos pais, tornou a minha vida mais difícil. Os apelidos aumentaram. As risadas de deboche também. Débora colocava o pé na minha frente para que eu tropeçasse. Puxava o meu cabelo. E incentivava a turma a rir das minhas respostas na sala de aula. Mas o que mais me incomodava, era a sua indiferença comigo. Eu a observava a distância no ponto de ônibus, no trajeto para casa, na sala de aula. Eu queria contar sobre as últimas leituras. Sobre os livros pegos num ritmo frenético,na biblioteca do colégio. Mas Débora me ignorava. E me maltratava.Para completar, passou a jogar bola (ela era ótima nisso) com Charles Duprat, o menino por quem eu era apaixonada.  Eu chorava confidenciando tudo a freira da biblioteca (irmã Ieda). Eu olhava para aquela menina da minha idade (12 anos), apesar de um pouco mais alta e forte; morena, com cabelos crespos repartidos ao meio e presos em fitas azul marinho, lábios e nariz grossos, considerada feia para os padrões de beleza da época. Olhava para a minha aparência delicada e pensava no que dissera minha mãe. E em meio ao suor escorrendo nas mãos e na testa, eu me perguntava porque eu não reagia a maldade de Débora. A verdade é que eu tinha medo. Eu a achava forte. E me considerava frágil!

Eu estudei quatro anos com Débora me maltratando. E depois de mudar de cidade e de colégio e de ficar dois anos longe, eu voltei para o Santa Dorotéia. Na matrícula, apresentaram-me duas salas. Uma com alunos novos e outra, com veteranos.Numa delas, lá estaria minha algoz. Eu engoli em seco, tremendo; e escolhi ficar na sala de Débora, que agora mal me olhava de longe, parecendo até meio constrangida. Apesar de termos crescido, as  memórias ainda me amedrontavam. Eu ainda suava muito quando a via. Mas foi só quando compreendi que todo o poder que Débora julgava ter, foi dado por mim. Só quando descobri, que ela precisava da minha fragilidade, prá se manter forte. Perante ela e perante os demais. Só à partir daí, as coisas começaram  mudar.

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Tem sentimento que a gente coloca no fundo da gaveta e esquece.Mas tem dias em que a gente insiste em arrumar as gavetas... E é como revisitar antigas fotografias. Cá estou eu a admirar o teu sorriso amarelado. A me lembrar do dia e hora  exatos do encontro de nossas bocas sedentas. A lembrar que eu menti quando afirmei não te querer mais. Basta abrir a gaveta e teu olhar me perscruta novamente. Eu fecho o móvel correndo e prometo que nunca mais serei tua! Até que venha a próxima faxina...

terça-feira, 13 de agosto de 2024

 Em todas as vezes em que eu vinha passar as férias em Ibotirama, voltar pra Salvador era um passo difícil. Partir pra longe da família de origem, dos amigos, da paisagem. Vir morar aqui em definitivo parecia muito bom, pelos reencontros. Mas deixar o mar e todo o fluxo que o envolvia não foi fácil! Então quando me dizem que é preciso encerrar ciclos, eu penso em todas as minhas partidas e chegadas. E me recordo que na tristeza do partir, o que me consolava eram as memórias felizes que me acometiam. Nunca é sobre a coragem de encerrar. Mas sobre a forma como carrego essas memórias. Se elas pesam ou me embalam. Tudo ficou mais fácil, depois que eu descobri que é a minha visão sobre aquilo que deixei, que ditará meu novo caminho...

sábado, 10 de agosto de 2024


 Eu ainda me lembro quando a nossa beira de rio tinha um movimento intenso, provocado pela dinâmica de quem dependia inteiramente dele. As pessoas saíam e chegavam através de embarcações. Compravam os alimentos que vinham atraves dele e vendiam a sua produção velejando através dele.  Eu me lembro das latas cheias d'água na cabeça e das roupas estendidas na beira do rio. Do canto das lavadeiras misturado ao cheiro do sabão. No agora, tudo é mais facilitado. A gente compra tudo com um clique ou atravessando a rua. A torneira jorra água limpa e farta. Mas, ledo engano, a gente acha que não depende do rio prá sobreviver. E com nosso descaso, estamos pagando prá ver...

Enquanto isso não acontece, posto por aqui, uma foto tirada por minha irmã, Orlamara, do Velho Chico, em Bom Jesus da Lapa, com o sorriso dessas moças, repletas de vida,em sua interação com o rio, prá acalmar nosso saudosismo e alegrar nossas almas ribeirinhas...

segunda-feira, 5 de agosto de 2024


 

Eu nasci e cresci  em família católica. Estudei um tempo em um Colégio de freiras. Li sobre a vida dos Santos. Fui batizada, fiz primeira comunhão e crismei. Já frequentei Igrejas Evangélicas. Depois percebi que eu precisava conhecer outras crenças, pra vencer preconceitos enraizados. Não era sobre religião, mas sobre espiritualidade. Pesquisei sobre Orixás. Li mais a Bíblia. Fui conhecer um terreiro. Visitei o Vale do Amanhecer. Passei por um Centro Espírita. Conversei com caboclos. Entoei outros cantos. Saudei a Jurema. Tomei um chá Sagrado.  Me deixei ser abraçada pela força da natureza. Hoje compreendo que nesse universo imenso, colorido e abundante, cabem todos! O Divino não se limita! Eu nunca duvidei da existência de um Criador. Mas hoje compreendo, que por ser a fonte e estar em tudo, ele não está a distância, alheio, como mero julgador. Acredito no Supremo, como a força motora, que para mim movimenta tudo o que existe! O Uno é o todo! Salve!


P.S. Na foto, á vista do quintal de Adriano Casanova, na Pedra Preta. Prá reverenciar, a grandiosidade de Deus!

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

 Ele dizia que me amava. Falava que eu era linda, passava horas me olhando, até encher o olho d´água.  Mas me afastava dos que demonstravam sentir amor por mim. 

Ele passava as mãos no meu cabelo, elogiava a minha aparência e dizia que me amava. Mas um dia sugeriu que eu abandonasse o batom vermelho e as preocupações com a estética, porque eram exagero. 

Ele afirmava que me amava. Mas censurou o meu sorriso largo. Me olhou feio quando riram de uma piada minha. Lia o que eu escrevia, mas me disse odiar quando me abraçavam como poeta.

Ele dizia que me amava. Mas questionou a minha independência financeira. Dedo em riste, rechaçou a minha autonomia.

Ele proclamava aos quatro ventos que me amava. Mas me pediu silêncio absoluto.

A condição do amor dele era que eu deixasse de expressar o que eu vim pra ser, assim tão abertamente.

Eu aceitei o amor que ele me ofereceu, mas passei a me sentir triste, porque não queria contrariá-lo.

E ele disse que continuaria me amando. Desde que eu esquecesse quem eu era. Porque ele se incomodava quando eu ousava voar na luz da manhã, nos finais de tarde ou nas noites de lua.

Então me convenci de que o problema não era ele. Era comigo.

Até que um dia eu descobri, que acreditei em uma mentira. Ele não me amava.

E foi aí que eu comecei, nesse movimento intenso de redescoberta. Pra construir por minhas próprias mãos, esse amor de que tanto falam e do qual creio ser merecedora...



quinta-feira, 1 de agosto de 2024

 Recordo-me que na adolescência (aos 14 anos), arrumando a bagagem pra estudar na capital, eu falei em casa que jamais voltaria para Ibotirama. Meu pai, cheio de sabedoria, me alertou: Cuidado, minha filha. Ouvi muita gente dizer isso e voltar. E ser mais feliz aqui. Certamente pensava na própria história. Ele mesmo, voltara após longos anos. Fato é que depois de vinte anos, eu voltei arrastando minhas ressalvas, meu companheiro, minha filha, algumas mágoas e o medo de estar retrocedendo, ao inverter a lógica e sair da capital para o interior. Hoje vejo que eu precisava me reconciliar com o meu torrão natal. Precisava vivenciar os últimos anos do meu pai e dos meus avós Minervino, Irineu e Josefa. Acolher a menina chorona que em mim habita e mostrar a ela que a cidade é o porto das minhas memórias. Talvez por isso aqui eu tenha escrito tanto, me atirado a esse universo da arte, da palavra, da cultura, como um náufrago se atracando ao bote. Em nenhum outro lugar eu pude  ser tanto, eu mesma! Talvez por isso, eu consiga ressignificar o abismo. Penso nos gatilhos de ansiedade que sofri, morando numa cidade barulhenta e distante da família. Penso na solidão de tantos dias. Hoje esse retorno, que já foi desespero, é acolhimento. Na minha infância, os finais de tarde aqui, para mim, eram tão solitários que me faziam chorar. Hoje, o céu alaranjado, ás vezes com uma lua nova surgindo, é motivo de uma alegria desmedida. 

Eu voltei prá me reencontrar! E tenho celebrado esse abraço apertado a que tenho me permitido. Toda a minha gratidão ao Universo!

Aproveito e posto essa foto do cais, ao cair da tarde, com a vista da casa de Dona Ivaí. Uma das lembranças que fazem a minha criança interior sorrir. É a ela, que ofereço essa festa.

quarta-feira, 31 de julho de 2024

                                Diário do avc - parte II


Eu sempre fui ansiosa.  Uma pressa. Uma agitação. Um desejo de fazer correr o tempo. Tio Bé dizia sempre: - ô, menina agoniada! Quando criança, a pressa em falar era tão grande, que eu gaguejava. Eu mal respirava. Na adolescência, eu segui querendo tudo num estalar de dedos.  E fui me tornando mulher, numa correria desenfreada.  Estudei. Trabalhei. Pari. Cozinhei. Me exercitei. Amei. Fazendo tudo desembestadamente. Hoje penso que o avc, que prá mim foi o caos, veio dizer: - Minha filha, relaxa! Eu que gosto tanto de natureza, de poesia, de música. Pouco parei para contemplar. E prá amar a mim mesma. E não foi por falta de tempo. Nem de oportunidades. Foi pela pressa de existir...

 Eu sou a filha do meio de Orlando e Maria.

Cheguei quando o rio
se sobrepunha a rodovia.

Cria do Velho Chico e Iansã
eu sou a que se encanta 
na luz da manhã.
Prá espalhar as vozes de Anália, Josefa, Irineu e Minervino.
a que renasceu no caos
prá no cais ressurgir
num por do sol laranja
e infindo.

Eu sou a lua cheia nos beirais.
E sigo inteira
em lugares
onde não poderei estar
JAMAIS!

(Tâmara Rossene)

segunda-feira, 17 de junho de 2024

 Eu antes tinha como meta prá minha vida, uma cadeira giratória, numa sala refrigerada e a tranquilidade de um emprego estável. Depois de muito esforço, essa realidade chegou, junto com a mecânica dos papeis, no cotidiano burocrático e repetitivo. E eu me senti escrava desse cotidiano! Penso nisso observando, em pleno sertão, as barrigudas em flor. Fugindo a predominância da paisagem ressequida, a floresta de galhos secos, a caatinga que se estende, sem folhagem, em alguns pontos, a exuberância da árvore em contraponto. Sendo apenas ela, uma festa! Nesse ponto, fico pensando em como nos prendemos a ilusões. 

Porque depois de tudo o que eu vivi, se me perguntam o que eu queria viver no agora, eu respondo que eu queria estar sentada na sombra de uma barriguda florida. Porque onde tudo parece limitado, eu quero aprender a ser possibilidades... Como a explosão de galhos floridos, em plena seca do sertão!

Foto cedida pela querida índia catingueira, em Irecê - Bahia.


Mas apesar



segunda-feira, 10 de junho de 2024

 A minha mais recente descoberta é que não, eu não sou uma mulher corajosa. Aí vocês vão me atalhar dizendo: Mas você venceu um avc. Mais passou por tais e tais processos... É, eu sei. Mais a minha mais recente descoberta, é que a minha maior sombra é e sempre foi O MEDO! Desde quando diziam que eu era uma menina caluduzeira, desde quando me taxaram de melancólica, paranóica ou problemática. Desde quando eu não dei um basta. Desde sempre... E porque dizer isso agora? talvez porque talvez  haja esperança dos fantasmas sumirem quando a gente os enfrenta. Sabe Belchior? " foi por medo de avião, que eu segurei pela primeira vez, na sua mão..." Sem romantizar, se o medo pemanece, eu não me permito.

Mas, de, tantos talvez, a verdade mesmo é que eu quero me tornar essa  mulher que dizem por aí que eu sou. E prá mim o maior ato de coragem, é não me importar com os julgamentos e assumir a minha maior fraqueza: SIM, EU SOU MUITO MEDROSA! Só admitindo quem eu sou de verdade, chegarei além... 

Só assumindo, poderei me tornar verdadeiramente EU!